Texto do Livro Os voos da psicologia no Brasil- Estudos e Práticas na Aviaçao -2002

VOAR: ENTRE O PRAZER E A REALIDADE
Maria da Conceição Pereira
“Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que ocurso tomado pelos eventos mentais está automaticamenteregulado pelo Princípio de Prazer, ou seja, acreditamos queo curso desses eventos é invariavelmente colocado emmovimento por uma tensão desagradável e que toma umadireção tal, que seu resultado final coincide com umaredução dessa tensão, isto é, com uma evitação dedesprazer ou uma produção do prazer.”FREUD (1920)
INTRODUÇÃO
Entenda-se com estas elaborações teóricas, o quanto é necessário o estudo sistemático doque podemos chamar de personalidade característica e própria ao vôo e o acompanhamento dohomem/aviador no dia-a-dia de suas atividades, buscando sempre um enfoque histórico-social, nosentido de que suas ações comportamentais devem ser entendidas em função do interagir da suaestrutura psíquica e suas relações psicossociais e afetivas.Neste texto, não é nossa intenção fazer conclusões teóricas e sim, criar a possibilidade depermitir que novas propostas surjam em contraponto ao que está sendo aqui enfatizado. O queapresentamos como um pensar teorizado, estão dimensionados e contextualizados nas observações eescutas realizadas no nosso trabalho de psicóloga voltado para a segurança de vôo enquantoanalisadora dos contribuintes humanos nos incidentes/acidentes aeronáuticos, como também a partirdos contatos formais e informais junto aos pilotos.O foco do nosso contexto teórico está calcado na forma de como preferimos pensar sobre ohomem, não numa verdade absoluta ou única, mas procurando pensar num modelo psicanalítico quetenta interpretar os fenômenos existentes no comportamento humano, tanto no plano individualcomo social, acreditando que essa perspectiva oferece este espaço de forma mais ampla para acompreensão dos fenômenos relacionados também ao homem que voa.As idéias Freudianas não ignoraram a importância dos laços sociais que os indivíduosformam uns com os outros, e as teorias psicanalíticas contemporâneas consideram que são vários osfatores que constituem e afetam a mente humana, e os enfatizam no contexto em que se fazempresente no seu dia-a-dia .A aviação, enquanto atividade profissional, tem, no nosso entender, característicasextremamente diferenciadas e exigências não menos complexas, onde o homem supera sua própriaimpossibilidade de sair da terra, voando através de um aparato artificial.Estamos nos detendo, em nossas análises e elaborações feitas de forma mais central nohomem/aviador que exerce a atividade de voar profissionalmente e mantém uma relação de trabalhojunto às organizações e empresas que são responsáveis pelos serviços da aviação no Brasil.Consideramos, nessas elaborações, uma compreensão e, ao mesmo tempo, refletimos sobreesse homem e sua segurança ao voar, entendendo que o sujeito que voa profissionalmente precisamanter seu prazer e desejo de voar, aliando sua satisfação pessoal com a profissional.O HOMEM QUE VOA E SUA DIMENSÃO PSÍQUICA“Voar na verdade, entre outras nuances, é um poucodaquele sentimento que te faz justificar ou nomear suaatitude de arriscar, transgredir, transcender ... atitudesque concretizam o desejo do homem voar...”CMTE. CARLOS BATISTAUm pensar psicanalíticoJá está por demais afirmado que o homem não é programado biológica nempsicologicamente para voar. Mas um desejo o mobilizou tanto, que a realidade da aviação de hoje,por si só, já deixa claro o que ele conseguiu alcançar.Num retorno às personagens mitológicas de Dédalo e Ícaro, encontramos a resposta de umaantiga intenção de realizar um desejo. E hoje, na transformação das penas e cera em um aparatotecnologicamente apropriado, ele realiza o seu intento. O desejo de voar no homem é o elementopropulsor para a realização dessa façanha. Esse desejo está psicologicamente dimensionado porrazões inconscientes, pré-conscientes e conscientes, pouco explicáveis ou de explicaçõescomplexas, já analisadas por vários teóricos.Buscar realizar o desejo de voar, remete ao prazer que se faz presente no ato de voar.No nosso trabalho junto à segurança de vôo, seja em investigação de incidentes e acidentesaeronáuticos ou como instrutora na área do fator humano, temos tido uma preocupação demelhorarmos nosso entendimento deste homem aviador e de suas relações com o voar. Sempre querealizamos uma entrevista junto aos pilotos, temos por costume, até para quebrarmos um pouco aformalidade imposta nas nossas relações junto aos mesmos, iniciarmos nossa conversa ouvido-osobre sua perspectiva de escolha profissional voltada para aviação e o que o impulsiona no seuprocesso motivacional ao vôo , questionando: o que o motiva voar? E embora não tenhamos feitonenhum estudo quantitativo sobre as respostas oferecidas podemos afirmar, de forma qualitativa,que a grande maioria dos aviadores que escutamos diz que: o que o motiva é o prazer que encontrano ato de voar!Partindo desses nossos encontros e conversas formais e informais, e procurando estudar osreferenciais teóricos da aviação que colocam a perspectiva do prazer consciente na atividade devoar como algo inerente e próprio do homem que busca a atividade aeronáutica, começamos sentir anecessidade de teorizar a relação desse prazer consciente com a atividade do voar para melhorcompreender esses homens. E procurando ampliar esse entendimento passamos a tecer um pensarpsicanalítico que nos possibilita dimensionar esse prazer e a sua vivência na prática.Nos reportamos a FREUD, em 1920 e o seu “Além do Princípio de Prazer”, que no nossoentender cabe muito significativamente para as elaborações aqui descritas. Ele relaciona o prazer eo desprazer à quantidade de excitação presente na mente. Existe uma forte tendência nos eventosmentais, no sentido da busca do prazer. Estamos sempre regidos pelo Princípio de Prazer, que épróprio de um processo primário de funcionamento do nosso aparelho psíquico (FREUD, 1976).Embora tenhamos tal tendência, não quer dizer que sempre o consigamos. Até porque, emfunção dos nossos instintos de autopreservação, o Princípio de Prazer é substituído pelo Princípiode Realidade”, que não abandona a intenção de se obter o prazer, mas exige e efetua o adiamento dasatisfação em um dado momento. Este Princípio de Realidade está nos níveis de pré-consciência econsciência, em um processo de funcionamento secundário (mais adiante explicaremos esseprocesso).LAPLANCHE & PONTALIS (1988), descrevendo os conceitos Freudianos de Princípio dePrazer e Princípio de Realidade, diz que o Princípio de Prazer rege o funcionamento mental e aatividade psíquica, no seu conjunto tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar o prazer. OPrincípio de Realidade rege o funcionamento mental, formando par com o Princípio de Prazer emodificando-o. Na medida em que o Princípio de Realidade consegue impor-se como princípioregulador, a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas segue pordesvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior.Freud postulou que o Princípio de Realidade se desenvolve a partir do desapontamento, dafrustração, e que o seu poder se exerce nas pulsões de autopresevação, o homem aprende arenunciar ao prazer momentâneo, incerto e destrutivo, substituindo-o pelo prazer adiado, restringidoe garantido. Assim, em função deste pensar, seguir as regras e os procedimentos, dentro dos padrõesoperacionais existentes na atividade de voar, pode significar restringir e adiar o prazer imediato,mas, também, garantir um vôo seguro e o prazer consciente.O entendimento desses princípios dar-se-á a partir da compreensão dos dois modos defuncionamento do nosso aparelho psíquico, o processo primário e o processo secundário.“Do ponto de vista tópico, o processo primário caracteriza o sistema inconsciente, e oprocesso secundário caracteriza o sistema pré–consciente e consciente”.“Sob o ponto de vista dinâmico, no processo primário a energia escoa-se livremente e tendea reinvestir plenamente as representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo.No processo secundário a energia começa por estar "ligada" antes de se escoar de forma controlada;as representações são investidas de uma maneira estável, a satisfação é adiada, permitindo assimexperiências mentais que conduzem a diferentes caminhos possíveis de satisfação”. (LAPLANCHE& PONTALIS, 1988).No processo evolutivo do pensamento Freudiano, ele identificou um dualismo funcional naspulsões voltadas para o instinto de preservação da vida que é a pulsão de autoconservação e apulsão sexual, onde a diferença básica dessas duas pulsões é que as mesmas se encontram sob opredomínio de diferentes princípios de funcionamentos, como as pulsões de autopreservação sópodem satisfazer-se com um objeto real, o princípio que rege seu funcionamento é o Princípio deRealidade, enquanto que as pulsões sexuais, podendo satisfazer-se com objetos fantasmáticos,encontra-se sob o domínio do Princípio de Prazer.Essa teoria dualista das pulsões foi progressivamente modificada, e Freud introduziu umnovo dualismo:o da pulsão de vida e da pulsão de morte. A tendência inerente de retorno que todoser vivo tem de retomar ao seu estado inorgânico, Freud chamou de pulsão de morte; enquanto oesforço para que esse objetivo se cumpra de maneira natural, ele denominou de pulsão de vida.Sendo objetivo da pulsão de vida evitar que a morte ocorra de forma não natural.É importante salientar que tanto as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação sãoconsideradas pulsões de vida, já que ambas são conservadoras, as primeiras mantendo o padrão derepetição, isto é, garantindo a mesmidade do organismo e a segunda preservando o organismo dainfluencia desviante dos fatores externos.Há, em todo ser vivo, uma tendência para a morte que é irremediavelmente cumpridasegundo a psicanálise. O que devemos entender é que essa tendência é interna ao ser vivo, resultade uma tentativa do próprio ser vivo de retornar a seu estado inorgânico, como já foi ditoanteriormente, e o que pode ocorrer é um movimento em direção a morte que é empreendida pelopróprio ser vivo.O que se entende é que a idéia de uma autonomia completa das pulsões é uma idéia limite,análoga a do funcionamento do Princípio de Prazer e do Princípio de Realidade.Partindo desse pressuposto, não temos a intenção de desenvolver estudos de todas aspossibilidades implícitas na teoria pulsional Freudiana nesse texto, mas fazer uma espécie de ponteno entendimento da preservação e conservação da segurança no voar com o Princípio de Prazer e oPrincípio de Realidade elaborando teoricamente nesse contexto.O ser humano, que não nasceu feito para o vôo, deve ter uma estrutura psíquica, na qual oprazer e a satisfação na atividade de voar possa manter seu componente de autopreservação. Voarem um instrumento artificial gera riscos constantes e necessita de uma motivação em níveis de préconsciênciae consciência que permita a sua segurança na realização de tal atividade. O pensamentoda vigília, o juízo, a atenção, o raciocínio e a ação controlada são exemplos de processossecundários que dimensionam o “Princípio de Realidade” .Considerando tal princípio comoregulador do funcionamento psíquico, podemos inferir que as atitudes expressas em dadas situaçõesestarão interligadas a esses componentes, e que os erros e as falhas humanas, que levam a umincidente/acidente, podem estar relacionados aos mesmos.Vale ressaltar que o princípio de prazer continua a reinar em todo campo das atividadespsíquicas, funcionando, segundo as leis do processo primário, em nível inconsciente. E nasobservações Freudianas há um campo muito vasto de compreensão a respeito do sistema designificação de natureza inconsciente, onde concluímos que o homem tende a dar significado a seumundo de maneira inconsciente. O mundo aeronáutico também se inclui nesta dimensão, muitoparticularmente , por todos os componentes simbólicos que a atividade de voar traz para o homemque voar.PATT Y MOIA (1989) colocam, em suas elaborações teóricas, “que ao sair da terra em suasmáquinas voadoras, o homem submete-se a um meio hostil onde fisiologicamente implicou numgrande processo adaptacional, que a tecnologia ajudou. Mas no que diz respeito ao nível mental(psicológico) não existe nenhum recurso tecnológico que permita ao homem ter uma adaptação àscondições de voar. E neste caso é nele, em si mesmo, através de um processo intrapsíquico quesurge está adaptação. Eles citam EY H. BERNARD “...dueno de su caracter autor de su personaje,artesano de su mundo y sujeito de su conocimiento”.Acreditamos que, no ser humano, a flexibilidade e a capacidade adaptativa vai acontecendoconforme as solicitações do ambiente e em função da percepção de seu mundo interno. É o pilotoque terá a consciência de si e que terá que administrar ou controlar os rendimentos instintivos epulsionais do seu inconsciente. A sua aptidão para perceber, avaliar, tomar consciência e decidirsobre si mesmo e em função do que o cerca, terá sempre um modo particular e pessoal quedependerá de suas interpretações e do significado que poderá dar aos estímulos que recebe, gerandocomportamentos diferenciados em cada situação e circunstância.Refletimos aqui que a estrutura psíquica será sempre um elemento fundamental no processoadaptacional do homem na atividade de voar.Voltando a PATT Y MOIA (1989), que dizem: “é no nível inconsciente onde se encontramas verdadeiras forças motivacionais que explicam os comportamentos atípicos e típicos da atividadeaeronáutica”, ressaltando esses componentes e a necessidade de buscarmos um entendimentopsicológico dos tripulantes em geral, de forma profunda e também através das manifestaçõespsicossomáticas e psicopatológicas que podem apresentar, nos quais manifestam-se os mecanismoscomplexos regidos não pelo Princípio de Realidade e da consciência, e sim pelo Princípio de Prazer.PATT (1985) dimensiona os componentes psicológicos que dinamicamente mantêm umaestrutura psíquica adequada para a motivação aeronáutica. Esses componentes, no nível consciente,passam pelo gosto de voar, pela busca de sensações novas; numa relação direta com o Princípio deRealidade e a satisfação do prazer. No nível pré-consciente, que envolve aspectos também doprocesso secundário, relacionados aos prováveis ganhos, a vivência do poder, benesses e facilidadesque a atividade de voar pode oferecer a quem a executa, e podemos acrescentar também, asrealizações pessoais que se procura nas profissões que se desempenham.Mas não podemos esquecer que é no nível inconsciente, que a força motivacional do desejoem voar, se efetua. A dimensão motivacional desse homem passa efetivamente pela perspectiva dopoder de transgredir, arriscar, ultrapassar as leis da natureza, e no desejo de superar a si e superar oque a natureza lhe impõe.A superação da angústia de voar, ou o medo de voar, é a fonte de referência paraentendermos a relação, provavelmente mais adequada, para a atividade aeronáutica.Como esses medos são superados ou como eles se fazem presentes em algumas pessoas eem outras não?A explicação, na visão psicanalítica, está em como nossas primeiras relações de afeto foramdimensionando o nosso mundo, e como as situações de temores relativas à angústia de morte, osnossos medos infantis, foram superados. É na superação desses medos que se efetivará asuplantação da angústia de voar. Nesta superação são exigidos recursos psíquicos inconscientesdenominados de mecanismos de defesa, que permitem a redução da ansiedade gerada diante daperspectiva do desprazer perceptivo.O desprazer pode ser a percepção externa do que é aflitivo em si mesmo, ou que existaexpectativas desprazerosas no aparelho psíquico. Isto é, que pode ser reconhecido como "perigo".As defesas utilizadas diminuem a angústia com relação à atividade aérea, estas defesasdevem ser entendidas como a forma que a nossa mente encontra para se proteger das tensõesinternas ou externas.Na atividade aeronáutica, as tensões relativas aos riscos são constantes, pois é uma atividadeem que o erro ou a falha humana pode levar a perdas de vidas, a perda da vida do piloto!Junto às tensões próprias de um vôo não podemos esquecer que, enquanto sujeitosbiopsicosocial, outras tensões, fora da atividade em si, podem estar existindo.No caso do piloto, dentre os mecanismos de defesa favoráveis ao vôo, descritos por PATT(1985), encontramos aqueles mecanismos que excluem a realidade do perigo, através da negação(negam a possibilidade da morte), redefinem a realidade na racionalização (o avião é o transportemais seguro que existe), evitam a realidade na repressão (não posso pensar que é perigoso, afastoeste pensamento da consciência!). Estes mecanismos se juntam a outros e reforçam a possibilidadeadaptacional do homem que voa.Se voar é potencialmente perigoso para o homem, os mecanismos de defesa favoráveisprecisarão estar sempre sendo utilizados, para a manutenção de uma estrutura psíquica adequada aovôo.Podemos sugerir que, de acordo com tudo que foi analisado dentro desta dimensão teóricapsicanalítica, no momento em que surge o desprazer perceptivo, que é o elemento que permite oreconhecimento do “perigo” iminente em uma dada situação, o homem/aviador deverá buscar umaresposta que esteja sendo regida pelo Princípio de Realidade, mantendo sua pulsão deautopresevação, garantindo sua segurança ao voar. Nessa perspectiva, pensamos no dualismo daspulsões de morte e pulsões de vida, isso seria garantir a normalidade do caminho para a morte. Seria manter o objetivo da pulsão de vida.
O PRAZER X A REALIDADE
“Solo el placer es capaz de transcender sobre el miedoinherente al peligro”.DIERO MIISENARD (1975)
O mundo exterior é o único a fazer as leis e regras na aviação. Como o piloto conseguemanter sua estrutura psíquica saudável vinculada no contexto dessas regras e leis, e ainda assim,também manter seu desejo e prazer de voar?Este é um questionamento pelo qual tentamos encontrar respostas, que devem partir dabusca do entendimento desse sujeito de forma integral, sua relação com a atividade de voar e todocontexto que esta atividade está inserida, de forma organizacional, política, social e econômica.Hoje, esta atividade está extremamente modificada na essência do que o homem aviadorbuscava em seus primórdios. Mudanças não só de ordem da perspectiva do desenvolvimentotecnológico, voltadas para a intensa automação nas aeronaves e dos demais sistemas cooperativosda aviação, mas também em função das relações implementadas pelas regras e normas vigentes, queimpõem a este homem um padrão específico, de comportamento no ato de voar. Comportamentoeste, que, provavelmente, nem sempre é o mais desejável por ele, o aviador, pois tem lhe roubado oprazer consciente nesse ato.É importante salientar que as novas tecnologias, ao mesmo tempo em que trouxeramsoluções, geraram outros problemas. O que nos leva a considerar uma nova perspectiva para ostreinamentos e aos vôos propriamente ditos; onde novos sistemas se fazem presentes, comprocedimentos e operações diferenciadas, que devem ser apreendidas e implementadas pelohomem/aviador dos dias de hoje.Nos parece que os pilotos se defrontam com a necessidade de estabelecer, no ato de voar,uma relação diferenciada com sua atividade, em função das exigências pré-estabelecidas no sistemaaeronáutico atual. Essas exigências devem os estar levando a formular novos mecanismos dedefesas, que devem aliar-se aos já descritos neste texto, tendo em vista a manutenção de sua saúdemental numa perspectiva de procurar dar conta de si e de seu prazer consciente em voar.Em paralelo as novas regras e procedimentos exigidos a este homem, com odesenvolvimento tecnológico, faz-se necessário também considerar que se percebe muitoclaramente uma mudança radical nas relações de trabalho, em todos os seguimentos profissionais domundo contemporâneo, atingindo também, é claro, a atividade aeronáutica..As perspectivas empresariais na aviação, no nosso entender, têm tomado rumos e caminhosem que o sentimento de pertinência ao sistema no piloto, não está se fazendo presente, uma vez quetomadas de decisões nos níveis gerências não tem levado em consideração nem respeitado seusposicionamentos como executores da atividade do voar, o que tem gerado tensões a mais e sejuntam àquelas que são próprias a sua atividade profissional, ampliando suas preocupações.Na nossa “escuta” junto a este homem, tem sido freqüente um discurso queixoso:“precisamos de tranqüilidade, de melhores condições de trabalho, de mais treinamento, de maiorconfiabilidade nos equipamentos que usamos, de não voar cansados, de respeito aos nossos limitespsicofísicos, de termos melhores salários, para que possamos cuidar melhor de nossas famílias,precisamos ser reconhecidos profissionalmente e respeitados como seres humanos!”.Forças externas a este homem, que trabalha na aviação, tem provavelmente o levado aperceber-se quase alheio dentro do sistema aeronáutico vigente.Usando uma proposta teórica de BOHOSLAVSKY (1983), que transformamos para o nossopensar e aqui formulamos, o piloto/aviador vive uma “alienação profissional”, entendendo essaalienação como alguém que vislumbra, por trás do desmoronamento de suas ilusórias imagensvocacionais de piloto, as condições reais de produção numa sociedade capitalista. Alguém quepercebe a substituição de sua onipotência narcisista (“quero ser um comandante de uma grandecompanhia aérea, ser reconhecido profissionalmente, ter um bom salário, viver bem e ter minharealização total como ser humano”) pela “encruzilhada opcional” do medo do desemprego (ou dafalta de emprego), da necessidade de suportar excesso de carga horária, dos salários nãocompatíveis as suas expectativas e de sentir-se apenas um elemento a mais de um sistemaoperacional. Só que, a base da segurança deste sistema operacional está neste homem!A realidade o coloca num plano subjetivo de um “lamento”, por não encontrar mais em suaatividade, os canais necessários do prazer possível e tão desejado. E assim se percebe numacontradição difícil de ser superada. Ele fica entre sua realização pessoal e seus ideais de vida.Pensando nas circunstâncias que se fazem presentes nos dias de hoje, junto à aviação, pareceque os pilotos se defrontam com a sensação de que as leis e projetos que devem seguir, lhes são“estranhas”!Diante deste quadro descrito, torna-se mais difícil ainda manter um estado psíquico adaptadoàs circunstâncias do voar, acarretando em situações onde a vulnerabilidade humana se evidencia. Eas falhas/erros humanos fazem-se mais presentes, resultado de quadro sintomático de reação a umambiente nocivo a este processo adaptativo.As elaborações teóricas aqui formuladas querem reforçar a necessidade de tratarmos doserros humanos como sintomas e não causas. Partindo do pressuposto que, buscar entendê-los,permitirá uma orientação ao gerenciamento de ações, de forma que se faça uma real prevençãojunto ao homem e sua segurança no voar.Teóricos e estudiosos do fator humano na aviação têm classificado os erros/falhas desseshomens, em função dos deslizes, lapsos, equívocos e violações que os mesmos possam apresentarnuma dada situação em vôo. Entendendo os deslizes e lapsos numa categoria em que, a intenção écorreta mas a ação é incorreta, e os equívocos e violações numa categoria em que a intenção éincorreta.O esquecimento de um item de um checklist após o atendimento de uma chamada docontrole de tráfego, e o ajuste incorreto da altitude no seletor do painel quando a altitude correta éconhecida e a intenção era ajustá-la corretamente são exemplos típicos de lapsos e deslizesrespectivamente que o homem pode cometer. O corte do motor errado no resultado de uma análiseincorreta dos parâmetros é visto como equívoco e insistir em pousar mesmo quando a visibilidademínima não foi obtida na aproximação final é entendida como uma violação.Buscar compreender esses erros/falhas humanas seria questionar o que está significandoestes comportamentos expressos, uma vez que em todos eles motivos inconscientes na ação sefizeram presentes.Quando nos deparamos com situações de incidentes e acidentes na aviação, as análisesformuladas são dimensionadas pelas observações feitas de forma genérica naquilo que éconsiderado falha humana, resultado de um ato explicado pela perspectiva relacional do homemcom os elementos básicos que o permite voar, sua relação com a máquina, as condiçõesorganizacionais e psicossociais presentes no desenrolar dos fatos que culminam com o evento.Observamos que, embora as análises procurem oferecer uma dimensão de que osincidentes/acidentes não ocorrem a partir de uma única falha, seguindo a visão de MAURIÑO et al.(1995), mas de uma série de fatores que constroem esses incidentes/acidentes, ainda tem se focado afalha ou erro humano numa dimensão onde o indivíduo, especialmente o piloto, é responsabilizado,inclusive criminalmente, por um ato que, provavelmente, conscientemente não tinha intenção depermitir acontecer.Entendemos que os erros/falhas devem ser abordados de forma diferenciada, considerandotodos os fatores que se fazem presentes nas relações efetivadas pelo homem na atividade de voar,analisando suas conseqüências e a forma de como seus efeitos podem ser revertidos.Enfrentar de forma sistemática as melhorias desejadas de segurança no voar, torna-seextremamente difícil na medida em que as organizações e as pessoas que as fazem, ficam commedo de entender as falhas humanas segundo um padrão verdadeiramente sistêmico. E reforçandouma cultura de segurança voltada para a culpa.Acreditamos que devemos procurar entender que, as falhas não ocorrem isoladamente, no ounum indivíduo, e que quando estão relacionadas ao indivíduo precisamos pensar no mesmo deforma integral, um ser biológico, psíquico e social, que se integra e busca adaptar-se a situação devôo, mas que também necessita de condições que favoreçam está adaptação.Em nossas elaborações, voltadas para o entendimento do homem na aviação, sugerimos queo elemento propulsor motivacional do vôo está no desejo e no conseqüente prazer consciente que seobtém ao voar. A complexidade existente nesse sistema motivacional, que parte do inconscientepara o consciente do homem, percorrendo toda sua estrutura psíquica, necessita de um ambiente queo favoreça encontrar as condições de manutenção do bem estar interno e externo, e assim permita oprocesso adaptacional adequado e seguro no seu ato em voar.Nosso questionamento básico aqui é: o que leva esses homens a executarem umprocedimento inadequado que pode levá-los à morte, deixando de lado sua pulsão deautopreservação, regido, como já descrito anteriormente, pelo Princípio de Realidade?Procurar uma resposta, para esta pergunta, passa fundamentalmente pelo próprio homem/aviador, seja ele iniciante ou experiente na atividade de voar, pelas suas características depersonalidade, que propõem uma forma de relacionar-se com o ato de voar no encontro com seudesejo e prazer de voar, e também no como este encontro está sendo permitido.Questionamos também as organizações e empresas em geral, ligadas à aviação eresponsáveis pelos vôos desses homens. Em que condições estão sendo permitidas esses homensvoarem?Podemos supor, dentro da abordagem teórica aqui proposta e dentro da idéia de que ohomem precisa manter-se equilibrado psicologicamente conservando fortalecida sua estruturapsíquica, que o sujeito que busca o prazer imediato, gerado pela ultrapassagem dos seus limites,pode estar buscando a superação do "perigo" que o excita e, inconscientemente ignorando suaautopreservação, efetivando um descompasso e a desintegração de suas ações no voar.Principalmente por não está vivenciando o estímulo, consciente e necessário, motivacional, o prazerem voar.Diante desse pensar, um tanto por demais subjetivo, mas não menos importante paraentendermos o homem e sua atividade no vôo, acreditamos estar contribuindo com a segurança devôo e alertando que esse homem, hoje tão pouco reconhecido no seu papel de piloto/aviador no diaa dia de seus afazeres profissionais, em um dado momento, regido essencialmente pelo Princípio dePrazer, possa inconscientemente buscar a essência do seu desejo e prazer em voar e a satisfaçãoimediata desse prazer, que sabemos, deve ser adiado na medida que garante a preservação de suavida.Procurando também pensar caminhos para tudo que aqui foi refletido, cremos que temosalgo a devolver a este homem. Entendemos, assim como PATT Y MOIA (1989) que colocam: só háum sentimento coerente no processo adaptacional do homem que voa, e nele encontramos apossibilidade de obtermos maior segurança no seu vôo: “la alegria de volar ”!Cremos também é necessário retornamos ao entendimento das necessidades desse homem epoder mantê-lo adaptado psicofisiológica e socialmente em sua atividade, assim, estaremosoferecendo a possibilidade concreta de manter a sua segurança no voar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOHOSLAVSKY, Rodolfo. Vocacional, teoria, técnica e ideologia. São Paulo: Cortez 1983.FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.LAPLANCHE, J., PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1988MAURINO, D. E. et al. Beyond aviation human factors: safety in high technology systems. Hants:Avebury Aviation, 1995. 169 p.PATT,H. O. L. Psiquiatria aeronautica sistemica. Buenos Aires: Cargieman, 1985.____________ Y MOIA, P.I. Sindromes de desaptación secundaria al vuelo. Buenos Aires:Sociedad Interamericana de Psicologia Aeronáutica, 1989.BIBLIOGRAFIA CONSULTADAABBOTT, Kanthy H. Erro humano e gerenciamento da segurança de vôo. Revista SIPAER, n.73,mar./maio 2000.BATISTA,C.G., PEREIRA, M.C. A escolha profissional e a identidade do piloto In: OLIVEIRA, I.Construindo caminhos, experiências e técnicas em orientação profissional. Recife: Ed.Universitária da UFPE, 2000.FREUD,Sigmund. Esboço de psicanálise; Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1998.GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1998GONZALES, C.B., SOUGEY, M.C.P. Automação/desejo e prazer de voar. Revista SIPAER, n.73,mar./maio 2000.

A AVIAÇÃO CONTEMPORÂNEA SUJEITO, CULTURA E SUBJETIVIDADE


MARIA DA CONCEIÇÃO PEREIRA
Mestra em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco
Assessora em Fatores Humanos – Segundo Serviço de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (SERIPA2)
ANA LÚCIA FRANCISCO
Doutora em Psicologia Clínica
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco

RESUMO

Este artigo procura aproximar os conceitos de sujeito, cultura e subjetividade e o mundo aeronáutico,
propondo uma leitura dos processos de subjetivação da aviação na contemporaneidade.
Essa leitura se dá, desde dos tempos primordiais da aviação diante do mito de Dédalo e Ícaro chegando a uma
análise que faz uma indicação de um novo processo de subjetivação na aviação sem mitos nem deuses.
Busca-se entender essa subjetivação no sentido de que ela vem se produzindo não só no registro dos processos ideológicos que permeiam e fazem funcionar a aviação no mundo atual, mas está, também, presente nos “corações dos indivíduos”: os sujeitos da aviação, que vêm fazendo e estão construindo essa mesma aviação, carregando consigo um modo de ver o mundo e de poder se articular, cada qual trazendo suas próprias condições de singularidade, criando assim uma ordem social produzida e articulada, e promovendo transformações diante de novos objetos e aparatos tecnológicos (novas aeronaves), novos conceitos e novas técnicas; uma aviação que se expressa para e na sociedade e, especialmente, naqueles que a fazem.



1-INTRODUÇÃO

Ao pensar em elaborar um texto que permitisse aproximar os conceitos de Sujeito, Cultura Subjetividade e o Mundo Aeronáutico, procuramos compreender subjetividade seguindo as idéias de Guattari e Rolnik (2001) que entendem processos de subjetivação como um campo de forças e fluxos de diferentes níveis que afetam os indivíduo e cuja afetação, se expressa nas figuras de subjetividade que podem se fazer presentes num gesto, num comportamento, num modo de pensar, de agir, enfim de estar no mundo.
Estes autores consideram a subjetividade de natureza “Maquínica”, pois ela é essencialmente fabricada, modelada, recebida e consumida e propõem: “ao invés de ideologia, prefiro falar sempre em subjetivação, em produção de subjetividade” (GUATTARI e ROLNIK, 2001, p.25). Assim, objetivamos no presente texto, pensar na produção da subjetividade dentro da aviação e do mundo aeronáutico.
Essa subjetividade vem se produzindo não só no registro dos processos ideológicos que permeiam e fazem funcionar a aviação no mundo, mas está, também, presente nos “corações dos indivíduos”: os sujeitos da aviação, que vêm fazendo e estão construindo essa mesma aviação, carregando consigo um modo de ver o mundo e de poder se articular, cada qual trazendo suas próprias condições de singularidade. Estas condições se expressam através de seus desejos, por um gosto de viver, por uma vontade de construir o mundo a que pertencem. E, assim, vão criando uma ordem social produzida e articulada, em que microfísicas de uma cultura engendram domínios de um saber fazer voar, permitindo mudanças e promovendo transformações diante de novos objetos e aparatos tecnológicos (novas aeronaves), novos conceitos e novas técnicas; uma aviação que se expressa para e na sociedade e, especialmente, naqueles que a fazem.


2- A ORIGEM MITOLÓGICA DA AVIAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO

Para fazer a ligação do sujeito da aviação, da cultura e da construção da subjetividade, acreditamos ser necessário realizar uma viagem, poderíamos até mesmo dizer, um vôo teórico e um retorno no tempo da mitologia e buscarmos nos mitos de Dédalo e Ícaro as origens do desejo de voar. Este recuo nos parece relevante na medida em que acreditamos que, ainda hoje, é este mito que influencia e se revela no sujeito da aviação e na cultura aeronáutica.
Vamos nos remeter aos idos do séc. XLII a.C., quando Púbilo Ouvídio Nasão, em suas Metamorfoses (BRANDÃO, 1994), narra um episódio consagrado da Mitologia greco-latina. Segundo esse autor, as mitologias concentram todos os símbolos que representam os valores culturais e uma dada sociedade e que são responsáveis por sua identidade cultural, uma vez que tornam possível o movimento de conscientização, mesmo que simbolicamente, daqueles valores impressos no inconsciente geral de seus componentes: "Com o recurso da imagem e da fantasia, os mitos abrem para consciência o acesso direto ao inconsciente coletivo", (JUNG apud BRANDÃO, 1994, p.86). Não obstante um conjunto de mudanças pertencentes ao mundo da pós-modernidade, promovendo novas relações dentro da atividade aérea e com os sistemas de segurança ao voar, ainda podemos perceber o quanto a origem mitológica do voar está presente no imaginário daqueles que fazem a aviação.
Assim sendo, a partir desta perspectiva, nos debrucemos sobre o relato mitológico de Nasão:

Esse Dédalo era ateniense, da família real de Cécrops, e foi o mais famoso artista universal, arquiteto, escultor e inventor consumado. É a ele que se atribuíam as mais notáveis obras de arte da época arcaica, de que fala Platão no Mênon. Mestre de seu sobrinho Talos, começou a invejar-lhe o talento e no dia em que este, inspirado na queixada de uma serpente, criou a serra, Dédalo o lançou do alto da Acrópole. A morte do jovem artista provocou o exílio do tio na ilha de Creta. Acolhido por Minos, tornou-se o arquiteto oficial do rei e, a pedido deste, construiu o célebre Labirinto, o grandioso palácio de Cnossos, com um emaranhado tal de quartos, salas e corredores, que somente Dédalo seria capaz, lá entrando, de encontrar o caminho de volta. Louco de ódio pelo acontecido (Dédalo, em dado momento, havia planejado com Ariadne a libertação de Teseu, filho de Ageu, rei de Atenas e oponente do rei de Creta), Minos descarregou sua ira sobre Dédalo e o prendeu no Labirinto com o filho Ícaro, que tivera de uma escrava do palácio, chamada Náucrates. Dédalo, todavia, facilmente encontrou a saída e, tendo engenhosamente fabricado para si e para o filho dois pares de asas de penas, presas aos ombros com cera, voou pelo vasto céu, em companhia de Ícaro. (BRANDÃO, 1994, p. 94).

Mas Ícaro, jovem rapaz movido pelo deslumbramento de sua condição de ultrapassar seus próprios limites e viver o prazer de voar, desconsiderou todos os avisos do pai Dédalo, de que se mantivesse afastado o bastante da superfície do mar, para que, na fuga do Labirinto, as penas de suas asas não se encharcassem, e do sol, para que a cera não derretesse, soltando as mesmas. Aproxima-se demasiadamente do sol e permite que o calor desmantele suas asas, fazendo-o precipitar ao Mar Egeu, que passou, a partir de então, se chamar Mar de Ícaro.
O que nos remete essa estória mitológica é que o processo de formulação de uma motivação, a atividade aeronáutica, se faz presente no homem desde os tempos mais remotos, aqui dimensionada pelo mito de Dédalo e Icaro. Este mito também caracteriza a vivência do primeiro acidente aeronáutico: Ícaro morre por não cumprir as normas e regulamentos impostos pelas prescrições de vôo que teria que estar atento e que foram normatizadas por seu pai, criador das asas, para possibilitar não só que ele vivesse o prazer e o poder trazido pelo vôo, mas, também, para garantir seu prazer consciente na continuidade de sua vida e na perspectiva de um vôo seguro.
Vamos aqui, também, nos inspirar no perfil caracteriológico para pilotos desenvolvido por Leimann Patt (1987) fundamentado na mitologia. Embora esse estudo dimensione quatro perfis mitológicos envolvendo, assim, outros mitos que também, por outras formas, realizaram vôos, vamos nos deter apenas no mito de Dédalo e Ícaro, pensando que esse mito primordialmente expressa o desejo e o prazer de voar no homem e as suas relações primitivas específicas com a situação de um vôo.
Segundo Leimann Patt (1987, p.132):

Dédalo é o protótipo do piloto engenhoso, hábil, inteligente, criterioso e prudente, que conhece seus limites e seus ‘mínimos’ e os respeita, que conhece os perigos aeronáuticos e não corre riscos desnecessários, predomina em sua motivação os aspectos utilitário e social do vôo antes dos demais aspectos. Ícaro é imprudente, imaturo, insaciável, que se exige de si mesmo e de sua máquina além de sua resistência, não mede riscos porque não tem consciência deste risco.

Dédalo representa uma conduta operativa de um piloto responsável e profissional, respeitoso com as regras, normas e com seus procedimentos, sendo, portanto emocionalmente equilibrado.
Leimann Patt (1987), descreve Ícaro como aquele que expressa imprudência de forma típica, propenso a erros por sua falta de critérios, de personalidade adolescente e imaturidade no manejo de seus afetos.
Descritos os perfis caracteriológicos a partir desses mitos, voltemos à nossa reflexão naquilo que especialmente queremos levantar como ponto de referência: a construção da subjetividade na aviação e na cultura aeronáutica desde os tempos mais remotos. Vejamos, primeiro: o sujeito inventado na aviação dos tempos primordiais se formulou muito especialmente numa imagem simbólica representada naquele que levado pelo seu desejo de voar e deslumbrado por sua própria condição de elevar-se aos céus, ultrapassou não só seus limites, mas as próprias condições pré-determinadas para a segurança de seu vôo. O mito símbolo que foi perpetuado no mundo aeronáutico como figura e imagem representativa e significativa foi mais Ícaro que Dédalo.
O que queremos suscitar, aqui, não é a perspectiva de pilotos identificados inadequadamente e/ou inconseqüentes quanto à sua segurança de voar por lembrarem Ícaro como símbolo; porém, pensando na significação vivida dos tempos primordiais da aviação, o que escutamos nos discursos dos pilotos, ainda hoje, e mesmos naquelas pessoas que pretendem tornarem-se aviadores, é a busca de um prazer, a busca da realização de um desejo, de um feito que efetivamente os fazem sentir ultrapassando suas condições terrenas, percebendo-se como invulneráveis diante da possibilidade da morte, vivendo algo que os transformem em um quase Deus poderoso ou o próprio Ícaro deslumbrado.
Retomando a vivência de Ícaro, ao perceber-se em vôo, pensemos que sua condição de deslumbramento trazia um prazer e uma alegria própria de um jovem que regido por sua imaturidade desconhecia os riscos efetivos de voar.
Chegamos a um ponto que cremos ser importante, pois nos auxilia na compreensão da ação do sujeito aviador de hoje, que expressa comportamentos, agindo sobre seu presente e seu real, diferenciando-se e se reconhecendo singular em sua existência, dentro da condição de um tempo que foi determinado e historicamente constituído, subjetivado, possivelmente em função deste mito.Isso nos permite inferir que, na aviação, a história do aviador vem se constituindo e se construindo, a partir de um sujeito na perspectiva da vivência do poder e do prazer ao voar e, podemos pensar, que a sua cultura se desenvolveu num movimento em torno deste mesmo sujeito.
Eizirik (1995) coloca que a subjetividade, que sempre foi um tanto rechaçada pela “mítica da objetividade” da ciência, nos remete para uma questão de possibilidades de reflexão sobre o campo do saber da própria existência humana. Assim, estamos aqui pensando a existência da aviação como fenômeno que faz parte e que tem um sentido para o homem na sua humanidade, entendendo humanidade como a capacidade que o homem tem de atribuir sentidos ao longo de sua história e de ser capaz de fazer ou elaborar sentidos novos, construindo, neste caso, um social na aviação em que singularidades se organizam através dos sujeitos que a vivem e a fazem.
Neste viver e fazer sentidos, ao mesmo tempo, os sujeitos se constroem e se descontroem na vivência de turbulências e vibrações de um novo, quando esse novo se faz necessário. O sujeito se desfaz e se refaz, a cultura mantém um movimento de interconexões de laços e de novos universos de referencias, num re-simbolizar o que está posto. A aviação dos tempos atuais não pode ser mais a mesma dos tempos primordiais, por tudo que vem afetando-a, tanto diante do desenvolvimento tecnológico instrumental, quanto diante dos novos processos de gerenciamento administrativo econômico no contexto de uma atividade produtora de bens e consumo de uma sociedade ainda dimensionada pelo capital.
A aviação vive novos processos de subjetivação fazendo emergir novas culturas e novos sujeitos.


3- A AVIAÇÃO DA PÓS-MODERNIDADE: UMA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE SEM MITOS NEM DEUSES.

Vivemos num tempo atônito que, ao debruçar-se sobre si próprio descobre que seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não ser, ora pensamos não Ter ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já ser, ora pensamos nunca vir a ser (SANTOS, 1985).

O sujeito da aviação da pós-modernidade parece ser aquele que tenta sustentar seu desejo de voar em tempo de crise, em um momento em que as transformações estão postas, porém ainda não elaboradas, vivendo, assim, um sofrimento ainda pouco dimensionado. Parecem cansados de lutar contra as perdas incessantes de condições anteriores, de uma aviação que trazia um poder para si, um poder de sedução diante do próprio mundo aeronáutico e da sociedade em que estava inserida e que, também, oferecia a esse sujeito um sentido diferenciado em sua existência.
Antes, este sentimento de poder o colocava numa condição de mito ou um quase Deus.
Hoje, ele passa a ser espectador do seu avião extremamente automatizado, que só necessita que gerencie seu sistema tecnológico de forma passiva, porém eficiente, com eficácia e precisão. Assim, torna-se um mero trabalhador de um sistema exigente, normatizado, padronizado e globalizado, gerido essencialmente por uma subjetivação capitalista, que não mais oferece a suposta condição de herói trazida pelos mitos e nem a de prazer sem dor.
Passando este sujeito a existir num contexto de um mal-estar social em função de condições de uma aviação globalizada e universalizada, numa cultura individualista e pouco solidária onde se vê instalado, tendo que lidar com incertezas e percebendo-se como um sujeito desalojado, perdido em sua navegação, quem sabe com “desorientação espacial”, à procura de um aeródromo que lhe permita pousar seguro.
A situação de crise da aviação, hoje, reforça a possibilidade que esse sujeito saia de sua condição cultural de um dado país e uma dada região e vá voar em lugares distantes para continuar sobrevivendo e mantendo-se em um emprego. Ele pode sair do Brasil e ir voar nos Emirados. Sua desterritorialização é literal.
Segundo Leimann Patt (2003), o piloto da pós-modernidade capta uma espécie de vazio, fruto de uma perversão dos papéis nas tomadas de decisões que deposita um mando nas mãos de um poder invisível, o da economia global, e vive uma pressão moral no trabalho que pode ser desencadeadora desse sofrimento social que o neoliberalismo produziu, surpreendendo os trabalhadores da aviação e não só a eles.
O que se processa, também, dentro da aviação do mundo de hoje, ainda é a busca daquela essência identitária, vivida como uma sólida morada de um tempo que não mais existe. O tempo dos heróis, deuses e mitos não tem mais espaço nos céus.
O cenário avançou da perspectiva de aeronaves que eram conduzidas pelo domínio cognitivo e motor dos pilotos levando-os a dimensionar sua relação com a máquina como uma mimetização onde no manejo, na condição de manobrar e segurar o manche, a força da máquina se juntava à condição humana onipotente de eleva-la aos céus como num só corpo. Hoje, a máquina já opera sem a necessidade concreta da força motora e cognitiva deste mesmo homem.
O cenário evoluiu tanto no que diz respeito à demanda de passageiros como na dimensão de um trafego aéreo, antes controlável por condições convencionais de um fluxo mais regional que internacional, aliando-se ao crescimento e exigência do mercado econômico, entre tantos outros pontos que fizeram fluir elementos que “desestabilizaram” o próprio sistema aeronáutico, existindo a necessidade da elaboração de um novo script.
Um script que deverá fomentar a possibilidade de “novas proteções” que servirão de apoio para os efeitos das turbulências que se efetivarão ao longo da trajetória de seus vôos, enquanto aviação do mundo pós-moderno, em que cada sujeito que faz a aviação possa compreender os processos de mudanças que estão ocorrendo ao longo da história da aeronáutica enquanto atividade e trabalho humano, vislumbrando suas próprias potencialidades e possibilidades de revisão de seus conceitos internos. Assim poderá formular um novo script, que vai se traduzir especialmente nos novos processos de subjetivação que vão se fundando, justamente na perspectiva de um sujeito da aviação não absoluto nem herói nem Deus, mas que possa apontar suas infinitas condições de criação e re-criação diante de suas atividades, permitindo formulação de novos significados e novos sentidos, que possam potencializar a sua vida e sua existência no meio aeronáutico.
Trazendo Suely Rolnik[1] (1992):

a subjetividade deste homem é intrinsecamente processual [...] e ela seria a própria processualidade, aquela heterogenese, repetição diferenciadora, através da qual vai se constituindo um si mesmo, sempre outro, uma espécie de estrangeiro.

O homem contemporâneo, vivido no sujeito da aviação, precisa ir de encontro a esse estranho, “encontrá-lo”, uma vez que ele lhe aponta para uma dimensão de uma alteridade que vai tomar corpo em sua existência, que é seu “próprio devir”.
A cultura que possivelmente se produzirá será permeada por essa condição de re-significação e de sentido novo, tanto para o sujeito como para a própria aviação em seu processo constante de subjetivação.
Creio que este texto pode ser finalizado deixando uma reflexão aberta, sem fronteiras e sem planos de rotas, que embora sejam tão necessárias para a segurança de um vôo no real, nas idéias aqui formuladas, abrem-se para infinitas rotas e possibilidades que são próprias do ser humano enquanto sujeito que dá sentindo ao seu mundo.
Pensemos nas palavras trazidas por Enriquez (2001, p.35):

O sujeito é, portanto, um ser capaz, ao mesmo tempo sapiens, demens (objeto da hybris), ludens e viator, homem, portanto, de sabedoria e loucura, do jogo e da vagabundagem, respirando a plenos pulmões um ar salubre, dando um sentido mais puro às palavras da tribo (MALLARMÉ), interessando-se mais pela germinação das coisas do que pelos resultados tangíveis, inebriado pela diversidade da vida e capaz de percebe-la, por tanto, homem que sabe desposar suas contradições e fazer de seus conflitos, de seus medos, de suas metamorfoses a própria condição de sua vida, sem dominar o caminho que toma nem as conseqüências exatas de seus atos; homem apto a recolocar em jogo sua vida e correr riscos.

Correr riscos, buscar prazer e poder foi a dimensão primordial na aviação e compõe a construção de seu sujeito, de sua história e de sua cultura.
Estamos e estaremos traçando “paisagens infinitas” de subjetivação na aviação e para tanto, parece-nos ser importante entender a “cartografia”, as “forças e fluxos” em que essas paisagens estão inseridas, para que possamos avaliar as condições de vôo do homem e qual o seu papel e possíveis formas de ação na atividade de voar no agora e no futuro.


REFERÊNCIAS

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BIBLIOGRAFIA

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