Fala da Jornada Clinica CRP PE 01\08\2025 Direitos Humanos em Pernambuco: Desafios e compromissos da Psicologia

 

Boa noite  a todas, todos e todes.

Me chamo Maria da Conceição Correia Pereira ( Concita)  sou psicóloga e venho, nos últimos anos, atuando em Pernambuco na interface entre a Psicologia da Aviação, a Gestão Integral do Risco, as Emergências e os Desastres psicologia Clinica infanto juvenil e de envelhecimento. E´ no campo da Gestão do Risco integral e da emergência e desastres que observa-se  como marcado por desigualdades, sofrimento coletivo e ausência de decisões  públicas eficazes que fui percebendo o quanto o direito à vida digna é, muitas vezes, o primeiro a ser violado quando ocorre um desastre, seja ele ambiental, social ou de outras ordens

 Em todas essas situações, o que está em jogo não é apenas a resposta técnica, mas a garantia de direitos: o direito ao cuidado, ao luto respeitado, à saúde física e mental, à moradia segurança  à informação adequada, à reparação e à escuta.
Por isso, hoje, ao falar de Direitos Humanos em solo  Pernambucano, me coloco não apenas como profissional, mas como alguém que carrega na prática cotidiana o compromisso ético- político da Psicologia com a defesa da dignidade humana.

Pernambuco tem sido, ao longo dos anos, um território de grandes lutas e também de grandes contradições. Relembro aqui o desastre de Jardim Monte Verde, em 2005, que revelou a vulnerabilidade estrutural de várias comunidades do Recife. Em 2010, as chuvas devastaram a Zona da Mata Sul e o Agreste, deixando um rastro de perdas materiais e humanas. E mais recentemente, em 2022, a região metropolitana do Recife voltou a ser palco de mortes anunciadas pela falta de ação do poder público e pela omissão histórica do Estado.

A Psicologia esteve presente nesses contextos, muitas vezes de forma voluntária, muitas vezes sem o apoio das políticas públicas. Estivemos ali, porque entendemos que o sofrimento humano não pode ser medicalizado nem silenciado  ele precisa ser escutado, acolhido e, acima de tudo, compreendido como um fenômeno que exige posicionamento.

A problemática dos direitos humanos em Pernambuco

Falar de Direitos Humanos no nosso estado é, antes de tudo, olhar para a profunda desigualdade estrutural que marca o acesso à cidade, à justiça, à educação, à saúde, à terra, à água e ao trabalho digno.

Em Pernambuco, os direitos são frequentemente seletivos. As populações negras, periféricas, LGBTQIAPN+, indígenas, ribeirinhas, pessoas com deficiência e mulheres e crianças seguem sendo alvo de violações sistemáticas. O racismo ambiental, por exemplo, se manifesta de forma evidente  quando áreas de morro ou de alagamento seguem sendo ocupadas por falta de alternativas habitacionais  e a morte se torna uma probabilidade cotidiana.

Nesse contexto, a Psicologia não pode se calar. Somos chamados a intervir em múltiplos espaços: da clínica ao CRAS, da escola ao sistema prisional, da universidade à rua  e em todos esses lugares precisamos afirmar o compromisso da nossa ciência e profissão com os direitos humanos.

 

 Os desafios enfrentados pela categoria profissional da Psicologia

Mas como manter esse compromisso em meio a tantas contradições?

Nós, profissionais da Psicologia em Pernambuco, enfrentamos uma série de desafios:

  • Contratos de trabalho precarizados
  • Ausência de políticas públicas estruturadas para atuação em emergências
  • Sobrecarga emocional em situações de calamidade
  • Falta de formação específica continuada em direitos humanos e interseccionalidade
  • Invisibilização do nosso trabalho em políticas públicas, especialmente em saúde mental

Além disso, há um risco recorrente de redução da nossa atuação a uma técnica despolitizada, descolada do contexto, como se fosse possível escutar sem se implicar, acolher sem compreender as estruturas de violência, ou cuidar sem questionar o que produz o sofrimento.

 Psicologia não é prática isolada: é projeto ético e científico de compromisso com os direitos humanos

A Psicologia em Pernambuco precisa afirmar cada vez mais  que nossa prática não é neutra, não é isolada e não pode se limitar ao individual. Não há cuidado real que se faça sem olhar para os determinantes sociais, sem escutar a comunidade, sem se colocar em diálogo com os movimentos sociais e com os territórios.

Não basta sermos boas técnicas ou bons clínicos: é preciso perguntar para quem, com quem e a serviço de quê estamos atuando.

E é aqui que se torna essencial reafirmar: os direitos humanos não são um “tema a mais” na Psicologia. Eles são a estrutura sobre a qual a nossa ciência precisa se erguer.

Seja na Psicologia Clínica, Social, Escolar, Organizacional, Comunitária, Ambiental ou nos contextos de emergência, todas as psicologias existentes devem ter o compromisso com os direitos humanos como eixo central.

Como ciência, precisamos construir evidências que revelem as estruturas que adoecem.
Como prática, precisamos atuar com escuta, com presença e com engajamento nos territórios.
Como categoria profissional, precisamos ampliar nossa voz nos espaços de controle social e de formulação de políticas públicas.

 Caminhos possíveis de engajamento: onde fortalecer nossa presença como categoria

Felizmente, Pernambuco é também um estado onde a resistência vive  e onde temos espaços coletivos que possibilitam o engajamento e a incidência política da Psicologia:

  • CREPOP/CRP-02 – que produz referências técnicas voltadas às políticas públicas e atua de forma comprometida com a ética e os direitos.
  • Comissão de Gestão de risco Emergências e Desastres – que discute ações formativas, protocolos e formas éticas de cuidado em desastres, muitas vezes em articulação com outros coletivos. A própria comissão de Diretos humanos .
  • Fórum de Entidades da Psicologia em Pernambuco – espaço de debate sobre a profissão em diálogo com a sociedade.
  • Conselhos de Direitos (como o CMDCA, o CEDHPE, entre outros) – onde é possível atuar diretamente na formulação de políticas públicas.
  • Coletivos populares e organizações históricas, como o Instituto PAPAI, GAJOP, Centro Dom Helder Câmara, CPT, MTST-PE, Fórum Popular de Segurança Pública, Rede Transvida, movimentos de luta por moradia, coletivos antirracistas e anticapacitistas.

Esses são espaços que nos desafiam a sair do consultório, da sala de aula, do atendimento isolado e ir para o chão onde os direitos estão sendo disputados e violados . Psicologia viva, política e comprometida

Concluo essa fala reafirmando que o compromisso com os direitos humanos não é um acessório da nossa formação é o seu fundamento.
Psicologia sem direitos humanos é apenas técnica sem alma.
Psicologia com direitos humanos é prática encarnada no mundo real, onde a vida pulsa, sangra, resiste e sonha.

Desejo que a nossa presença, como psicólogas e psicólogos em Pernambuco, continue sendo uma presença viva, implicada, com coragem ética e com ternura política.

Muito obrigada.

 

 

A Psicologia em Tempos de Emergências : Cuidar-se Para Cuidar

 


Por Concita Maria da Conceição Correia Pereira

1. Cenários de Emergências: Desafios do Cuidado em Tempos Críticos

Refletir sobre a psicologia em tempos de emergências nos remete, antes de tudo, ao cuidado com quem cuida. Em contextos marcados por situações críticas, essa perspectiva torna-se um imperativo ético e humano.

O primeiro ponto que queremos destacar nesta fala diz respeito à crescente visibilidade dos desastres que, infelizmente, têm atingido com frequência diversas regiões do planeta. Dentre eles, destacam-se os desastres socioambientais, intensificados pelas mudanças climáticas  ainda negadas por muitos, mas evidentes em tragédias como a vivida no estado do Rio Grande do Sul. Essa experiência dolorosa, que ainda não se encerrou, escancarou a gravidade dos impactos ambientais e sociais que atingem comunidades inteiras.

Mas não estamos falando apenas de desastres ambientais . As tragédias tecnológicas, como o crime socioambiental de Brumadinho causado pela mineradora Vale, também revelam as engrenagens de um sistema neoliberal que prioriza o lucro acima da vida. Em todos esses contextos, é imprescindível voltar o olhar para os profissionais que estão na linha de frente: aqueles que acolhem, resgatam, atendem e, também sofrem profundamente.

Precisamos pensar nesses sujeitos não apenas como técnicos, mas como pessoas atravessadas pela dor dos outros  e também pelas suas próprias dores. O sofrimento do outro nos convoca a reconhecer o nosso próprio, e só o cuidado consigo mesmo pode impedir que essa dor se transforme em adoecimento psíquico, físico e social.

2. O Desafio do Autocuidado: Cuidar-se Para Cuidar

O segundo ponto que nos desafia é a prática do autocuidado. Muitas vezes, essa dimensão é negligenciada, como se fosse algo secundário ou uma concessão, quando deveria ser compreendido como um direito e uma necessidade ética. No entanto, reconhecer nossas vulnerabilidades  físicas, emocionais e psíquicas é fundamental para prevenir o sofrimento e mitigar seus efeitos.

Costumo afirmar que um dos pilares para lidar com o sofrimento daqueles que cuidam é uma formação sólida, aliada à consciência de suas competências e habilidades pessoais e profissionais. Quem tem clareza sobre seu saber técnico está mais preparado para agir com segurança em contextos críticos. Essa consciência favorece a tomada de decisões e a operacionalização de ações eficazes, mesmo diante da incerteza dos cenários que se transformam rapidamente.

Dou um exemplo real: em uma situação de desabamento, fui chamada para resgatar uma senhora que havia perdido quatro familiares soterrados. Ela se recusava a sair do local, tomada pela dor e pelo desespero. A intervenção imprimia ser rápida, empática e precisa. Usei palavras que a ajudassem a se reconectar com sua própria sobrevivência. Reconecta-la a sua condição de vida e de existência no contexto da sua família e da sua capacidade de resiliencia emocional, não foi fácil, realizamos algo que Baubert,2010 chama de oxigenação psíquica  e convencê-la a sair foi um ato de mitigação de sofrimento e de prevenção de um possível trauma maior. Conseguimos retirá-la sem o uso da força algo que, caso necessário, faríamos por sua própria segurança. Essa experiência reafirma o quanto a formação e a habilidade em negociação, comunicação e escuta ativa  são fundamentais em tais momentos .

Além disso, é essencial compreender que não estamos sozinhos. Muitos profissionais atuam em rede, e devemos evitar o peso da onipotência  aquela crença de que precisamos dar conta de tudo sozinhos. Isso só aprofunda uma fadiga silenciosa, uma fadiga que tenho o costume de chamar fadiga existencial que defini em minha dissertação de mestrado como um estado profundo de esgotamento emocional, mental e espiritual que vai além do cansaço físico ou da exaustão típica do trabalho. Ela se caracteriza por um sentimento persistente de vazio, falta de sentido, desalento diante da vida e desconexão com o propósito pessoal ou coletivo. e muitas vezes não reconhecida: a fadiga existencial, marcada por um cansaço que antecede até mesmo o início da jornada de trabalho.A Fadiga existencial é o esgotamento que resulta não apenas do excesso de fazer, mas da ausência de sentido no que se faz.Em uma trabalho de cuidar de pessoas em vulnerabilidades , solicita a nossa compreensão de compartilhar e absorver  saberes , conhecimentos advindos de outros profissionais que estão atuando no mesmo âmbito de tais situações e devemos cuidar da partilha, construir coletivos de apoio e fortalecer as redes são caminhos possíveis para diluir essa sobrecarga. Nenhum cuidado pode ser feito isoladamente. O “nós” precisa estar acima do “eu” quando se trata de preservar a saúde mental de quem cuida.

3. Escutar os Sinais do Corpo e da Alma

Cuidar de si para cuidar do outro exige escuta atenta aos nossos próprios sinais de alerta: dificuldades para dormir, insônia persistente, angústia diária, tristeza prolongada, uso contínuo de medicamentos  mesmo os mais simples  e, sobretudo, a presença sutil de ideações suicidas, que podem se expressar em formas veladas, como a negligência com o próprio bem-estar.

Por isso, recomendo um acompanhamento psicológico contínuo para profissionais que atuam diretamente com o sofrimento humano. Psicólogos e assistentes sociais, por exemplo, tendem a buscar mais esse tipo de apoio. Já médicos, enfermeiros, bombeiros, policiais e outros trabalhadores de ponta, por vezes presos em posturas de negação ou de onipotência, resistem mais a procurar ajuda.

Reforço aqui a necessidade de que instituições e organizações criem programas específicos voltados ao cuidado com o cuidador, considerando os fatores humanos envolvidos. Cuidar de quem cuida não pode ser apenas um discurso: precisa ser uma política institucional.

O Cuidado de Quem Cuida é uma Urgência Coletiva

Cuidar de quem cuida não é um favor, nem um gesto de boa vontade  é uma urgência ética, política e institucional. Não se trata apenas de garantir que profissionais estejam “bem” para continuar produzindo, mas de reconhecer que são seres humanos atravessados pelas dores que enfrentam, pelas perdas que testemunham, pelas impossibilidades diante daquilo que não podem evitar.

O sofrimento psíquico de quem atua em situações de emergência, catástrofes, desigualdades e abandono institucional não pode mais ser romantizado nem invisibilizado. A exaustão desses profissionais não é fraqueza  é sinal de que algo no sistema precisa mudar.

O cuidado com quem cuida deve ser compreendido como parte da resposta social aos desastres, à dor e à reconstrução da vida. Não é algo adicional, é estruturante. É condição de permanência com dignidade. É também resistência.

Sem políticas de acolhimento, espaços de escuta, suporte técnico e emocional, e sem o fortalecimento das redes de apoio e solidariedade, continuaremos adoecendo aqueles que mais sustentam a vida nos momentos mais difíceis.

Que possamos seguir lembrando: ninguém cuida de ninguém com potência quando está esgotado, solitário ou sem sentido. O cuidado começa dentro e precisa se expandir para o coletivo.

Esse é o nosso compromisso: não apenas cuidar do outro, mas construir um mundo em que também possamos ser cuidados.

Quero concluir com um pensamento de Freud que ressoa profundamente com o tema que nos une hoje. Em um de seus textos, ele afirma:

 

 

“Volte seus olhos para dentro, contemple suas próprias profundezas, aprenda primeiro a conhecer-se.”

 

 

Esse convite à introspecção é, na verdade, um convite ao cuidado com a própria vida. O caminho do autoconhecimento é essencial para uma existência mais plena e feliz. Ao mergulharmos em nossas profundezas com coragem e aceitação, tornamo-nos mais capazes de cuidar do outro com leveza. E, assim, mitigamos nossas próprias dores, adoecemos menos e seguimos mais inteiros naquilo que escolhemos fazer: cuidar.

 

 

Esse é o grande desafio. E também o grande chamado.

 

 

No Olho da Tempestade: A Atuação da Psicologia em Desastres Aéreos

 


Por Maria da Conceição Correia Pereira CRP 02\1376

Fala aos profissionais de psicologia e interessados no tema da gestão do risco integral e emergências e desastres junto ao CRP Minas Gerais – O tema do desastres aéreos

 

Boa noite a todas todos todes . É com imenso respeito à nossa profissão, e também à dimensão humana da dor que permeia os desastres, que compartilho com vocês um pouco da minha prática e reflito sobre a atuação da psicologia diante de uma das formas mais impactantes e visíveis de tragédia moderna: os desastres aéreos.

 

Abrimos esta conversa evocando memórias que muitas vezes assistimos pela televisão ou lemos nas manchetes: o silêncio após o estrondo, as sirenes de bombeiros e das ambulâncias a angústia de familiares em salas de aeroporto, os escombros espalhados, e os nomes que de repente ganham rostos e histórias. O desastre da Chapecoense em 2016, o voo 1901 da Gol  sobre a mata amazonas o voo 3054 da TAM em Congonhas em 2007 ( este acidente está sendo apresentando documentário na netflix neste momento) , ou mesmo o acidente com a Varig em 1982 que teve na época uma repercussão midiática bastante significativa,  são exemplos que marcaram profundamente não só os familiares e sobreviventes, mas também a coletividade não só da comunidade aeronáutica mas na população em geral ,  nacional e internacional.

 

A pergunta que nos guia hoje é: qual o papel do psicólogo frente a essa condição de  complexidade? Como podemos atuar com ética, competência e sensibilidade em cenários de tamanha ruptura humana e simbólica?

 

1. Entendendo os desastres e os desastres aéreos

 

Segundo a ONU, desastres são eventos graves e disfuncionais que ultrapassam a capacidade de resposta de uma comunidade, exigindo ajuda externa e provocando perdas humanas, materiais, ambientais ou institucionais. No Brasil, a Lei nº 12.608/2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, também define desastres como ocorrências adversas que causam danos significativos.

 

Os desastres aéreos se inserem na categoria de desastres tecnológicos — provocados por condições  humanas, técnicas ou estruturais. São marcados muito pontualmente por :

- Grande visibilidade midiática;

- Impacto coletivo e simbólico (aeronaves representam tecnologia, controle, segurança);a idéia do desatre aéreo é permiada or uma concepção de racionalidade onde o transporte aéreo é considerado o mais seguro. E o desastre quando é vivenciado quebra ou desaloja essa racionalidade

- Fragmentação corporal e dificuldades no reconhecimento das vítimas; ou até mesmo a impossibilidade de resgate dos corpos

- Demandas jurídicas e burocráticas longas para os familiares de vitimas ;

- Alto grau de sofrimento psíquico para todos os envolvidos, incluindo equipes de trabalho não só da empresa atingida pelo desastre mas atinge toda comunidade aeronáutica.

 

2. Impactos psicológicos dos desastres aéreos

 

Os efeitos psicológicos variam conforme a posição do sujeito em relação ao desastre.

 

a) Vítimas diretas ou sobreviventes: sofrem frequentemente choques psicológicos intensos, confusão mental, sensação de irrealidade, estados dissociativos e sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). A culpa do sobrevivente é comum: “por que eu vivi e os outros não?”

 

b) Familiares das vítimas: vivem o que chamamos de luto traumático ou luto prolongado mas devemos entender que luto é processo e que coloca as pessoas envolvidas em condição de risco e de fato pode se torna em condição psicopatológica com comordidades especificas  — especialmente quando não há um corpo identificado. A dor é agravada pela espera por informações, pelas dificuldades de comunicação e pela exposição midiática. A psicologia tem papel crucial no acolhimento e na facilitação do processo de luto considerando todo o contexto de cada cenário em cada condição do acidente aéreo. O acolhimento a dor e ao sofrimento pode dimensionar condições de vivencia adaptacional ou não nas perdas vivenciadas diante da população atingida de forma direta pelo desastre.

 

c) Socorristas, psicólogos e equipes de emergência: também são impactados. Muitas vezes desenvolvem trauma vicário, que é traumatização secundária que é um fenômeno psicológico que afeta pessoas que lidam diretamente e intensamente com os sofrimentos de outras, especialmente no contexto do cuidado escuta e assistencia,  esgotamento por empatia, ou burnout. Precisam de acolhimento, supervisão e espaços de cuidado psicológico.

 

d) Comunidade e mídia: o desastre aéreo gera um abalo simbólico que atinge o imaginário coletivo. Pode provocar ansiedade, medo de voar, desconfiança em instituições, e até mesmo sintomas psíquicos difusos. A psicologia social e comunitária tem papel aqui.

 

3. Fases do desastre e a atuação do psicólogo

 

A atuação do psicólogo deve respeitar as quatro fases do ciclo de gestão de riscos e desastres:

 

a) Prevenção e preparação:

- Participar dos planos de contingência dos aeroportos;

- Realizar treinamentos, simulados e capacitações para equipes de solo, bombeiros, aeroviários e agentes públicos;

- Trabalhar com a noção de prontidão emocional e protocolos de resposta.

 

b) Resposta imediata:

- Estar presente em Centros de Apoio aos Familiares (CAFs);

- Oferecer Primeiros Cuidados Psicológicos (PCP): escuta ativa, estabilização emocional, acolhimento imediato;

- Acompanhar a comunicação de más notícias, junto a médicos e autoridades;

- Garantir o respeito à cultura, às crenças e ao tempo psíquico de cada pessoa.

 

c) Recuperação:

- Oferecer atendimentos psicológicos individuais e em grupo;

- Criar espaços para o luto, elaboração simbólica da perda;

- Apoiar funcionários da companhia aérea, tripulação sobrevivente e equipes de resgate;

- Produzir documentos psicológicos quando necessário para auxiliar processos judiciais ou administrativos.

 

d) Reconstrução e prevenção:

- Contribuir com investigações de impacto psicossocial;

- Participar de comissões de revisão de políticas públicas e protocolos de resposta;

- Registrar aprendizados e fortalecer redes interdisciplinares.

 

4. Ferramentas de atuação

 

- Primeiros Cuidados Psicológicos (PCP), baseados nos princípios da OMS: proteger do dano, confortar, conectar com recursos e escutar sem invadir;

- Técnicas de grounding, respiração, e estabilização;

- Abordagens terapêuticas específicas, como EMDR, Terapia Cognitivo-Comportamental para TEPT, terapia do luto e grupos de apoio;

- Abordagem centrada na pessoa, ética e sensível às necessidades singulares em meio ao caos.

 

5. Marco ético e legal da atuação do psicólogo

 

Nosso trabalho deve estar ancorado em princípios éticos e legais sólidos.

 

a) Código de Ética Profissional do Psicólogo:

- Compromisso com a dignidade humana;

- Atuação com competência, limites técnicos e atualização constante;

- Respeito às singularidades e aos contextos de sofrimento.

 

b) Resoluções e notas técnicas do Conselho Federal de Psicologia (CFP):

- Resolução CFP nº 007/2003: disciplina a atuação do psicólogo em situações de emergências e desastres, ressaltando a necessidade de formação específica e a articulação com a Defesa Civil;

- Nota Técnica CFP nº 03/2020: elaborada durante a pandemia de COVID-19, traz orientações sobre acolhimento, cuidado ao profissional da psicologia e atuação interdisciplinar;

- Nota Técnica CFP nº 01/2022: orienta sobre comunicação de notícias difíceis, enfatizando escuta, privacidade e respeito às emoções dos envolvidos.

 

c) Integração com políticas públicas:

- Lei 12.608/2012 (Defesa Civil);

- Participação em comitês, núcleos psicossociais e parcerias com ANAC, CENIPA, Ministério Público, etc.

 

6. Legislação da Aviação Civil e sua Relação com o Atendimento Psicológico

 

A atuação psicológica em acidentes aéreos se ancora em marcos legais que estruturam a resposta humanitária e organizacional.

 

- Anexo 9 da Convenção de Chicago (OACI/ICAO): define a responsabilidade dos Estados em prover assistência humanitária, emocional e prática às vítimas de acidentes aéreos e seus familiares.

- Circular nº 285/ANAC (2013): obriga empresas aéreas a elaborarem o Plano de Assistência às Vítimas de Acidentes Aéreos e seus Familiares (PAVAA), que inclui protocolos de acolhimento psicológico, comunicação, apoio logístico e social.

- RBAC nº 20 (Regulamento Brasileiro da Aviação Civil): estabelece normas de investigação de acidentes e recomenda suporte às vítimas e familiares no processo.

- Portaria 1.356/GM do Ministério da Saúde (1994): define a resposta a múltiplas vítimas, prevendo integração entre SUS, SAMU e rede psicossocial.

- Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018): exige cuidado com informações sensíveis e confidencialidade.

 

7. Desafios e reflexões

 

- Preparar-se emocionalmente para atuar onde o sentido é posto à prova;

- Lidar com a exposição midiática, pressões institucionais e ausência de tempo;

- Atuar com firmeza ética e profunda humanidade;

- Cuidar do cuidador — psicólogos também precisam de suporte, supervisão e escuta.

 

8. Fechamento

 

Como psicólogos e psicólogas, não temos como evitar o desastre. Mas temos o poder de tornar o sofrimento mais digno, a dor mais acompanhada, e o caos um pouco mais humano.

 

Que nossa escuta não seja só técnica, mas também afetiva.

Que sejamos pontes, mesmo entre escombros.

E que a psicologia esteja sempre onde a vida pulsa – mesmo quando tudo parece ruir.

 

Muito obrigada.

RECOMEÇO COM RAIZES



Volto ao espaço com o mesmo proposito que me move há tanto tempo : Pensar , escrever e compartilhar experiencias que nascem da escuta , da prática e do compromisso com o humano 

Durante um tempo, o silencio foi necessário . Mas hoje , o silencio amadureceu, e virou gesto de retorno

Reabrir este blog é para mim, um exercício de  reocupar a palavra pública 

Sou psicóloga, atuo com psicologia da aviação , com gestão do risco , com emergências e desastres. Mas antes de tudo sou alguém que crer na Palavra como forma de cuidado.

Aqui quero seguir construindo pontes , entre reflexão e ação. Quero trazer textos, registros experiencias e provocações que nascem no chão onde piso e dos céus por onde voam , com medo, esperança ou dor .

Seja quem for que passe por aqui , saiba: Este blog é território de escuta , ética e pensamento .

Estou de volta 

Com raízes mais fundas .

E com a mesma vontade de aprender , de ensinar e de seguir escrevendo o que importa.

Concepereira