No Olho da Tempestade: A Atuação da Psicologia em Desastres Aéreos

 


Por Maria da Conceição Correia Pereira CRP 02\1376

Fala aos profissionais de psicologia e interessados no tema da gestão do risco integral e emergências e desastres junto ao CRP Minas Gerais – O tema do desastres aéreos

 

Boa noite a todas todos todes . É com imenso respeito à nossa profissão, e também à dimensão humana da dor que permeia os desastres, que compartilho com vocês um pouco da minha prática e reflito sobre a atuação da psicologia diante de uma das formas mais impactantes e visíveis de tragédia moderna: os desastres aéreos.

 

Abrimos esta conversa evocando memórias que muitas vezes assistimos pela televisão ou lemos nas manchetes: o silêncio após o estrondo, as sirenes de bombeiros e das ambulâncias a angústia de familiares em salas de aeroporto, os escombros espalhados, e os nomes que de repente ganham rostos e histórias. O desastre da Chapecoense em 2016, o voo 1901 da Gol  sobre a mata amazonas o voo 3054 da TAM em Congonhas em 2007 ( este acidente está sendo apresentando documentário na netflix neste momento) , ou mesmo o acidente com a Varig em 1982 que teve na época uma repercussão midiática bastante significativa,  são exemplos que marcaram profundamente não só os familiares e sobreviventes, mas também a coletividade não só da comunidade aeronáutica mas na população em geral ,  nacional e internacional.

 

A pergunta que nos guia hoje é: qual o papel do psicólogo frente a essa condição de  complexidade? Como podemos atuar com ética, competência e sensibilidade em cenários de tamanha ruptura humana e simbólica?

 

1. Entendendo os desastres e os desastres aéreos

 

Segundo a ONU, desastres são eventos graves e disfuncionais que ultrapassam a capacidade de resposta de uma comunidade, exigindo ajuda externa e provocando perdas humanas, materiais, ambientais ou institucionais. No Brasil, a Lei nº 12.608/2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, também define desastres como ocorrências adversas que causam danos significativos.

 

Os desastres aéreos se inserem na categoria de desastres tecnológicos — provocados por condições  humanas, técnicas ou estruturais. São marcados muito pontualmente por :

- Grande visibilidade midiática;

- Impacto coletivo e simbólico (aeronaves representam tecnologia, controle, segurança);a idéia do desatre aéreo é permiada or uma concepção de racionalidade onde o transporte aéreo é considerado o mais seguro. E o desastre quando é vivenciado quebra ou desaloja essa racionalidade

- Fragmentação corporal e dificuldades no reconhecimento das vítimas; ou até mesmo a impossibilidade de resgate dos corpos

- Demandas jurídicas e burocráticas longas para os familiares de vitimas ;

- Alto grau de sofrimento psíquico para todos os envolvidos, incluindo equipes de trabalho não só da empresa atingida pelo desastre mas atinge toda comunidade aeronáutica.

 

2. Impactos psicológicos dos desastres aéreos

 

Os efeitos psicológicos variam conforme a posição do sujeito em relação ao desastre.

 

a) Vítimas diretas ou sobreviventes: sofrem frequentemente choques psicológicos intensos, confusão mental, sensação de irrealidade, estados dissociativos e sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). A culpa do sobrevivente é comum: “por que eu vivi e os outros não?”

 

b) Familiares das vítimas: vivem o que chamamos de luto traumático ou luto prolongado mas devemos entender que luto é processo e que coloca as pessoas envolvidas em condição de risco e de fato pode se torna em condição psicopatológica com comordidades especificas  — especialmente quando não há um corpo identificado. A dor é agravada pela espera por informações, pelas dificuldades de comunicação e pela exposição midiática. A psicologia tem papel crucial no acolhimento e na facilitação do processo de luto considerando todo o contexto de cada cenário em cada condição do acidente aéreo. O acolhimento a dor e ao sofrimento pode dimensionar condições de vivencia adaptacional ou não nas perdas vivenciadas diante da população atingida de forma direta pelo desastre.

 

c) Socorristas, psicólogos e equipes de emergência: também são impactados. Muitas vezes desenvolvem trauma vicário, que é traumatização secundária que é um fenômeno psicológico que afeta pessoas que lidam diretamente e intensamente com os sofrimentos de outras, especialmente no contexto do cuidado escuta e assistencia,  esgotamento por empatia, ou burnout. Precisam de acolhimento, supervisão e espaços de cuidado psicológico.

 

d) Comunidade e mídia: o desastre aéreo gera um abalo simbólico que atinge o imaginário coletivo. Pode provocar ansiedade, medo de voar, desconfiança em instituições, e até mesmo sintomas psíquicos difusos. A psicologia social e comunitária tem papel aqui.

 

3. Fases do desastre e a atuação do psicólogo

 

A atuação do psicólogo deve respeitar as quatro fases do ciclo de gestão de riscos e desastres:

 

a) Prevenção e preparação:

- Participar dos planos de contingência dos aeroportos;

- Realizar treinamentos, simulados e capacitações para equipes de solo, bombeiros, aeroviários e agentes públicos;

- Trabalhar com a noção de prontidão emocional e protocolos de resposta.

 

b) Resposta imediata:

- Estar presente em Centros de Apoio aos Familiares (CAFs);

- Oferecer Primeiros Cuidados Psicológicos (PCP): escuta ativa, estabilização emocional, acolhimento imediato;

- Acompanhar a comunicação de más notícias, junto a médicos e autoridades;

- Garantir o respeito à cultura, às crenças e ao tempo psíquico de cada pessoa.

 

c) Recuperação:

- Oferecer atendimentos psicológicos individuais e em grupo;

- Criar espaços para o luto, elaboração simbólica da perda;

- Apoiar funcionários da companhia aérea, tripulação sobrevivente e equipes de resgate;

- Produzir documentos psicológicos quando necessário para auxiliar processos judiciais ou administrativos.

 

d) Reconstrução e prevenção:

- Contribuir com investigações de impacto psicossocial;

- Participar de comissões de revisão de políticas públicas e protocolos de resposta;

- Registrar aprendizados e fortalecer redes interdisciplinares.

 

4. Ferramentas de atuação

 

- Primeiros Cuidados Psicológicos (PCP), baseados nos princípios da OMS: proteger do dano, confortar, conectar com recursos e escutar sem invadir;

- Técnicas de grounding, respiração, e estabilização;

- Abordagens terapêuticas específicas, como EMDR, Terapia Cognitivo-Comportamental para TEPT, terapia do luto e grupos de apoio;

- Abordagem centrada na pessoa, ética e sensível às necessidades singulares em meio ao caos.

 

5. Marco ético e legal da atuação do psicólogo

 

Nosso trabalho deve estar ancorado em princípios éticos e legais sólidos.

 

a) Código de Ética Profissional do Psicólogo:

- Compromisso com a dignidade humana;

- Atuação com competência, limites técnicos e atualização constante;

- Respeito às singularidades e aos contextos de sofrimento.

 

b) Resoluções e notas técnicas do Conselho Federal de Psicologia (CFP):

- Resolução CFP nº 007/2003: disciplina a atuação do psicólogo em situações de emergências e desastres, ressaltando a necessidade de formação específica e a articulação com a Defesa Civil;

- Nota Técnica CFP nº 03/2020: elaborada durante a pandemia de COVID-19, traz orientações sobre acolhimento, cuidado ao profissional da psicologia e atuação interdisciplinar;

- Nota Técnica CFP nº 01/2022: orienta sobre comunicação de notícias difíceis, enfatizando escuta, privacidade e respeito às emoções dos envolvidos.

 

c) Integração com políticas públicas:

- Lei 12.608/2012 (Defesa Civil);

- Participação em comitês, núcleos psicossociais e parcerias com ANAC, CENIPA, Ministério Público, etc.

 

6. Legislação da Aviação Civil e sua Relação com o Atendimento Psicológico

 

A atuação psicológica em acidentes aéreos se ancora em marcos legais que estruturam a resposta humanitária e organizacional.

 

- Anexo 9 da Convenção de Chicago (OACI/ICAO): define a responsabilidade dos Estados em prover assistência humanitária, emocional e prática às vítimas de acidentes aéreos e seus familiares.

- Circular nº 285/ANAC (2013): obriga empresas aéreas a elaborarem o Plano de Assistência às Vítimas de Acidentes Aéreos e seus Familiares (PAVAA), que inclui protocolos de acolhimento psicológico, comunicação, apoio logístico e social.

- RBAC nº 20 (Regulamento Brasileiro da Aviação Civil): estabelece normas de investigação de acidentes e recomenda suporte às vítimas e familiares no processo.

- Portaria 1.356/GM do Ministério da Saúde (1994): define a resposta a múltiplas vítimas, prevendo integração entre SUS, SAMU e rede psicossocial.

- Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018): exige cuidado com informações sensíveis e confidencialidade.

 

7. Desafios e reflexões

 

- Preparar-se emocionalmente para atuar onde o sentido é posto à prova;

- Lidar com a exposição midiática, pressões institucionais e ausência de tempo;

- Atuar com firmeza ética e profunda humanidade;

- Cuidar do cuidador — psicólogos também precisam de suporte, supervisão e escuta.

 

8. Fechamento

 

Como psicólogos e psicólogas, não temos como evitar o desastre. Mas temos o poder de tornar o sofrimento mais digno, a dor mais acompanhada, e o caos um pouco mais humano.

 

Que nossa escuta não seja só técnica, mas também afetiva.

Que sejamos pontes, mesmo entre escombros.

E que a psicologia esteja sempre onde a vida pulsa – mesmo quando tudo parece ruir.

 

Muito obrigada.

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