Texto do Livro Os voos da psicologia no Brasil- Estudos e Práticas na Aviaçao -2002

VOAR: ENTRE O PRAZER E A REALIDADE
Maria da Conceição Pereira
“Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que ocurso tomado pelos eventos mentais está automaticamenteregulado pelo Princípio de Prazer, ou seja, acreditamos queo curso desses eventos é invariavelmente colocado emmovimento por uma tensão desagradável e que toma umadireção tal, que seu resultado final coincide com umaredução dessa tensão, isto é, com uma evitação dedesprazer ou uma produção do prazer.”FREUD (1920)
INTRODUÇÃO
Entenda-se com estas elaborações teóricas, o quanto é necessário o estudo sistemático doque podemos chamar de personalidade característica e própria ao vôo e o acompanhamento dohomem/aviador no dia-a-dia de suas atividades, buscando sempre um enfoque histórico-social, nosentido de que suas ações comportamentais devem ser entendidas em função do interagir da suaestrutura psíquica e suas relações psicossociais e afetivas.Neste texto, não é nossa intenção fazer conclusões teóricas e sim, criar a possibilidade depermitir que novas propostas surjam em contraponto ao que está sendo aqui enfatizado. O queapresentamos como um pensar teorizado, estão dimensionados e contextualizados nas observações eescutas realizadas no nosso trabalho de psicóloga voltado para a segurança de vôo enquantoanalisadora dos contribuintes humanos nos incidentes/acidentes aeronáuticos, como também a partirdos contatos formais e informais junto aos pilotos.O foco do nosso contexto teórico está calcado na forma de como preferimos pensar sobre ohomem, não numa verdade absoluta ou única, mas procurando pensar num modelo psicanalítico quetenta interpretar os fenômenos existentes no comportamento humano, tanto no plano individualcomo social, acreditando que essa perspectiva oferece este espaço de forma mais ampla para acompreensão dos fenômenos relacionados também ao homem que voa.As idéias Freudianas não ignoraram a importância dos laços sociais que os indivíduosformam uns com os outros, e as teorias psicanalíticas contemporâneas consideram que são vários osfatores que constituem e afetam a mente humana, e os enfatizam no contexto em que se fazempresente no seu dia-a-dia .A aviação, enquanto atividade profissional, tem, no nosso entender, característicasextremamente diferenciadas e exigências não menos complexas, onde o homem supera sua própriaimpossibilidade de sair da terra, voando através de um aparato artificial.Estamos nos detendo, em nossas análises e elaborações feitas de forma mais central nohomem/aviador que exerce a atividade de voar profissionalmente e mantém uma relação de trabalhojunto às organizações e empresas que são responsáveis pelos serviços da aviação no Brasil.Consideramos, nessas elaborações, uma compreensão e, ao mesmo tempo, refletimos sobreesse homem e sua segurança ao voar, entendendo que o sujeito que voa profissionalmente precisamanter seu prazer e desejo de voar, aliando sua satisfação pessoal com a profissional.O HOMEM QUE VOA E SUA DIMENSÃO PSÍQUICA“Voar na verdade, entre outras nuances, é um poucodaquele sentimento que te faz justificar ou nomear suaatitude de arriscar, transgredir, transcender ... atitudesque concretizam o desejo do homem voar...”CMTE. CARLOS BATISTAUm pensar psicanalíticoJá está por demais afirmado que o homem não é programado biológica nempsicologicamente para voar. Mas um desejo o mobilizou tanto, que a realidade da aviação de hoje,por si só, já deixa claro o que ele conseguiu alcançar.Num retorno às personagens mitológicas de Dédalo e Ícaro, encontramos a resposta de umaantiga intenção de realizar um desejo. E hoje, na transformação das penas e cera em um aparatotecnologicamente apropriado, ele realiza o seu intento. O desejo de voar no homem é o elementopropulsor para a realização dessa façanha. Esse desejo está psicologicamente dimensionado porrazões inconscientes, pré-conscientes e conscientes, pouco explicáveis ou de explicaçõescomplexas, já analisadas por vários teóricos.Buscar realizar o desejo de voar, remete ao prazer que se faz presente no ato de voar.No nosso trabalho junto à segurança de vôo, seja em investigação de incidentes e acidentesaeronáuticos ou como instrutora na área do fator humano, temos tido uma preocupação demelhorarmos nosso entendimento deste homem aviador e de suas relações com o voar. Sempre querealizamos uma entrevista junto aos pilotos, temos por costume, até para quebrarmos um pouco aformalidade imposta nas nossas relações junto aos mesmos, iniciarmos nossa conversa ouvido-osobre sua perspectiva de escolha profissional voltada para aviação e o que o impulsiona no seuprocesso motivacional ao vôo , questionando: o que o motiva voar? E embora não tenhamos feitonenhum estudo quantitativo sobre as respostas oferecidas podemos afirmar, de forma qualitativa,que a grande maioria dos aviadores que escutamos diz que: o que o motiva é o prazer que encontrano ato de voar!Partindo desses nossos encontros e conversas formais e informais, e procurando estudar osreferenciais teóricos da aviação que colocam a perspectiva do prazer consciente na atividade devoar como algo inerente e próprio do homem que busca a atividade aeronáutica, começamos sentir anecessidade de teorizar a relação desse prazer consciente com a atividade do voar para melhorcompreender esses homens. E procurando ampliar esse entendimento passamos a tecer um pensarpsicanalítico que nos possibilita dimensionar esse prazer e a sua vivência na prática.Nos reportamos a FREUD, em 1920 e o seu “Além do Princípio de Prazer”, que no nossoentender cabe muito significativamente para as elaborações aqui descritas. Ele relaciona o prazer eo desprazer à quantidade de excitação presente na mente. Existe uma forte tendência nos eventosmentais, no sentido da busca do prazer. Estamos sempre regidos pelo Princípio de Prazer, que épróprio de um processo primário de funcionamento do nosso aparelho psíquico (FREUD, 1976).Embora tenhamos tal tendência, não quer dizer que sempre o consigamos. Até porque, emfunção dos nossos instintos de autopreservação, o Princípio de Prazer é substituído pelo Princípiode Realidade”, que não abandona a intenção de se obter o prazer, mas exige e efetua o adiamento dasatisfação em um dado momento. Este Princípio de Realidade está nos níveis de pré-consciência econsciência, em um processo de funcionamento secundário (mais adiante explicaremos esseprocesso).LAPLANCHE & PONTALIS (1988), descrevendo os conceitos Freudianos de Princípio dePrazer e Princípio de Realidade, diz que o Princípio de Prazer rege o funcionamento mental e aatividade psíquica, no seu conjunto tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar o prazer. OPrincípio de Realidade rege o funcionamento mental, formando par com o Princípio de Prazer emodificando-o. Na medida em que o Princípio de Realidade consegue impor-se como princípioregulador, a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas segue pordesvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior.Freud postulou que o Princípio de Realidade se desenvolve a partir do desapontamento, dafrustração, e que o seu poder se exerce nas pulsões de autopresevação, o homem aprende arenunciar ao prazer momentâneo, incerto e destrutivo, substituindo-o pelo prazer adiado, restringidoe garantido. Assim, em função deste pensar, seguir as regras e os procedimentos, dentro dos padrõesoperacionais existentes na atividade de voar, pode significar restringir e adiar o prazer imediato,mas, também, garantir um vôo seguro e o prazer consciente.O entendimento desses princípios dar-se-á a partir da compreensão dos dois modos defuncionamento do nosso aparelho psíquico, o processo primário e o processo secundário.“Do ponto de vista tópico, o processo primário caracteriza o sistema inconsciente, e oprocesso secundário caracteriza o sistema pré–consciente e consciente”.“Sob o ponto de vista dinâmico, no processo primário a energia escoa-se livremente e tendea reinvestir plenamente as representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo.No processo secundário a energia começa por estar "ligada" antes de se escoar de forma controlada;as representações são investidas de uma maneira estável, a satisfação é adiada, permitindo assimexperiências mentais que conduzem a diferentes caminhos possíveis de satisfação”. (LAPLANCHE& PONTALIS, 1988).No processo evolutivo do pensamento Freudiano, ele identificou um dualismo funcional naspulsões voltadas para o instinto de preservação da vida que é a pulsão de autoconservação e apulsão sexual, onde a diferença básica dessas duas pulsões é que as mesmas se encontram sob opredomínio de diferentes princípios de funcionamentos, como as pulsões de autopreservação sópodem satisfazer-se com um objeto real, o princípio que rege seu funcionamento é o Princípio deRealidade, enquanto que as pulsões sexuais, podendo satisfazer-se com objetos fantasmáticos,encontra-se sob o domínio do Princípio de Prazer.Essa teoria dualista das pulsões foi progressivamente modificada, e Freud introduziu umnovo dualismo:o da pulsão de vida e da pulsão de morte. A tendência inerente de retorno que todoser vivo tem de retomar ao seu estado inorgânico, Freud chamou de pulsão de morte; enquanto oesforço para que esse objetivo se cumpra de maneira natural, ele denominou de pulsão de vida.Sendo objetivo da pulsão de vida evitar que a morte ocorra de forma não natural.É importante salientar que tanto as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação sãoconsideradas pulsões de vida, já que ambas são conservadoras, as primeiras mantendo o padrão derepetição, isto é, garantindo a mesmidade do organismo e a segunda preservando o organismo dainfluencia desviante dos fatores externos.Há, em todo ser vivo, uma tendência para a morte que é irremediavelmente cumpridasegundo a psicanálise. O que devemos entender é que essa tendência é interna ao ser vivo, resultade uma tentativa do próprio ser vivo de retornar a seu estado inorgânico, como já foi ditoanteriormente, e o que pode ocorrer é um movimento em direção a morte que é empreendida pelopróprio ser vivo.O que se entende é que a idéia de uma autonomia completa das pulsões é uma idéia limite,análoga a do funcionamento do Princípio de Prazer e do Princípio de Realidade.Partindo desse pressuposto, não temos a intenção de desenvolver estudos de todas aspossibilidades implícitas na teoria pulsional Freudiana nesse texto, mas fazer uma espécie de ponteno entendimento da preservação e conservação da segurança no voar com o Princípio de Prazer e oPrincípio de Realidade elaborando teoricamente nesse contexto.O ser humano, que não nasceu feito para o vôo, deve ter uma estrutura psíquica, na qual oprazer e a satisfação na atividade de voar possa manter seu componente de autopreservação. Voarem um instrumento artificial gera riscos constantes e necessita de uma motivação em níveis de préconsciênciae consciência que permita a sua segurança na realização de tal atividade. O pensamentoda vigília, o juízo, a atenção, o raciocínio e a ação controlada são exemplos de processossecundários que dimensionam o “Princípio de Realidade” .Considerando tal princípio comoregulador do funcionamento psíquico, podemos inferir que as atitudes expressas em dadas situaçõesestarão interligadas a esses componentes, e que os erros e as falhas humanas, que levam a umincidente/acidente, podem estar relacionados aos mesmos.Vale ressaltar que o princípio de prazer continua a reinar em todo campo das atividadespsíquicas, funcionando, segundo as leis do processo primário, em nível inconsciente. E nasobservações Freudianas há um campo muito vasto de compreensão a respeito do sistema designificação de natureza inconsciente, onde concluímos que o homem tende a dar significado a seumundo de maneira inconsciente. O mundo aeronáutico também se inclui nesta dimensão, muitoparticularmente , por todos os componentes simbólicos que a atividade de voar traz para o homemque voar.PATT Y MOIA (1989) colocam, em suas elaborações teóricas, “que ao sair da terra em suasmáquinas voadoras, o homem submete-se a um meio hostil onde fisiologicamente implicou numgrande processo adaptacional, que a tecnologia ajudou. Mas no que diz respeito ao nível mental(psicológico) não existe nenhum recurso tecnológico que permita ao homem ter uma adaptação àscondições de voar. E neste caso é nele, em si mesmo, através de um processo intrapsíquico quesurge está adaptação. Eles citam EY H. BERNARD “...dueno de su caracter autor de su personaje,artesano de su mundo y sujeito de su conocimiento”.Acreditamos que, no ser humano, a flexibilidade e a capacidade adaptativa vai acontecendoconforme as solicitações do ambiente e em função da percepção de seu mundo interno. É o pilotoque terá a consciência de si e que terá que administrar ou controlar os rendimentos instintivos epulsionais do seu inconsciente. A sua aptidão para perceber, avaliar, tomar consciência e decidirsobre si mesmo e em função do que o cerca, terá sempre um modo particular e pessoal quedependerá de suas interpretações e do significado que poderá dar aos estímulos que recebe, gerandocomportamentos diferenciados em cada situação e circunstância.Refletimos aqui que a estrutura psíquica será sempre um elemento fundamental no processoadaptacional do homem na atividade de voar.Voltando a PATT Y MOIA (1989), que dizem: “é no nível inconsciente onde se encontramas verdadeiras forças motivacionais que explicam os comportamentos atípicos e típicos da atividadeaeronáutica”, ressaltando esses componentes e a necessidade de buscarmos um entendimentopsicológico dos tripulantes em geral, de forma profunda e também através das manifestaçõespsicossomáticas e psicopatológicas que podem apresentar, nos quais manifestam-se os mecanismoscomplexos regidos não pelo Princípio de Realidade e da consciência, e sim pelo Princípio de Prazer.PATT (1985) dimensiona os componentes psicológicos que dinamicamente mantêm umaestrutura psíquica adequada para a motivação aeronáutica. Esses componentes, no nível consciente,passam pelo gosto de voar, pela busca de sensações novas; numa relação direta com o Princípio deRealidade e a satisfação do prazer. No nível pré-consciente, que envolve aspectos também doprocesso secundário, relacionados aos prováveis ganhos, a vivência do poder, benesses e facilidadesque a atividade de voar pode oferecer a quem a executa, e podemos acrescentar também, asrealizações pessoais que se procura nas profissões que se desempenham.Mas não podemos esquecer que é no nível inconsciente, que a força motivacional do desejoem voar, se efetua. A dimensão motivacional desse homem passa efetivamente pela perspectiva dopoder de transgredir, arriscar, ultrapassar as leis da natureza, e no desejo de superar a si e superar oque a natureza lhe impõe.A superação da angústia de voar, ou o medo de voar, é a fonte de referência paraentendermos a relação, provavelmente mais adequada, para a atividade aeronáutica.Como esses medos são superados ou como eles se fazem presentes em algumas pessoas eem outras não?A explicação, na visão psicanalítica, está em como nossas primeiras relações de afeto foramdimensionando o nosso mundo, e como as situações de temores relativas à angústia de morte, osnossos medos infantis, foram superados. É na superação desses medos que se efetivará asuplantação da angústia de voar. Nesta superação são exigidos recursos psíquicos inconscientesdenominados de mecanismos de defesa, que permitem a redução da ansiedade gerada diante daperspectiva do desprazer perceptivo.O desprazer pode ser a percepção externa do que é aflitivo em si mesmo, ou que existaexpectativas desprazerosas no aparelho psíquico. Isto é, que pode ser reconhecido como "perigo".As defesas utilizadas diminuem a angústia com relação à atividade aérea, estas defesasdevem ser entendidas como a forma que a nossa mente encontra para se proteger das tensõesinternas ou externas.Na atividade aeronáutica, as tensões relativas aos riscos são constantes, pois é uma atividadeem que o erro ou a falha humana pode levar a perdas de vidas, a perda da vida do piloto!Junto às tensões próprias de um vôo não podemos esquecer que, enquanto sujeitosbiopsicosocial, outras tensões, fora da atividade em si, podem estar existindo.No caso do piloto, dentre os mecanismos de defesa favoráveis ao vôo, descritos por PATT(1985), encontramos aqueles mecanismos que excluem a realidade do perigo, através da negação(negam a possibilidade da morte), redefinem a realidade na racionalização (o avião é o transportemais seguro que existe), evitam a realidade na repressão (não posso pensar que é perigoso, afastoeste pensamento da consciência!). Estes mecanismos se juntam a outros e reforçam a possibilidadeadaptacional do homem que voa.Se voar é potencialmente perigoso para o homem, os mecanismos de defesa favoráveisprecisarão estar sempre sendo utilizados, para a manutenção de uma estrutura psíquica adequada aovôo.Podemos sugerir que, de acordo com tudo que foi analisado dentro desta dimensão teóricapsicanalítica, no momento em que surge o desprazer perceptivo, que é o elemento que permite oreconhecimento do “perigo” iminente em uma dada situação, o homem/aviador deverá buscar umaresposta que esteja sendo regida pelo Princípio de Realidade, mantendo sua pulsão deautopresevação, garantindo sua segurança ao voar. Nessa perspectiva, pensamos no dualismo daspulsões de morte e pulsões de vida, isso seria garantir a normalidade do caminho para a morte. Seria manter o objetivo da pulsão de vida.
O PRAZER X A REALIDADE
“Solo el placer es capaz de transcender sobre el miedoinherente al peligro”.DIERO MIISENARD (1975)
O mundo exterior é o único a fazer as leis e regras na aviação. Como o piloto conseguemanter sua estrutura psíquica saudável vinculada no contexto dessas regras e leis, e ainda assim,também manter seu desejo e prazer de voar?Este é um questionamento pelo qual tentamos encontrar respostas, que devem partir dabusca do entendimento desse sujeito de forma integral, sua relação com a atividade de voar e todocontexto que esta atividade está inserida, de forma organizacional, política, social e econômica.Hoje, esta atividade está extremamente modificada na essência do que o homem aviadorbuscava em seus primórdios. Mudanças não só de ordem da perspectiva do desenvolvimentotecnológico, voltadas para a intensa automação nas aeronaves e dos demais sistemas cooperativosda aviação, mas também em função das relações implementadas pelas regras e normas vigentes, queimpõem a este homem um padrão específico, de comportamento no ato de voar. Comportamentoeste, que, provavelmente, nem sempre é o mais desejável por ele, o aviador, pois tem lhe roubado oprazer consciente nesse ato.É importante salientar que as novas tecnologias, ao mesmo tempo em que trouxeramsoluções, geraram outros problemas. O que nos leva a considerar uma nova perspectiva para ostreinamentos e aos vôos propriamente ditos; onde novos sistemas se fazem presentes, comprocedimentos e operações diferenciadas, que devem ser apreendidas e implementadas pelohomem/aviador dos dias de hoje.Nos parece que os pilotos se defrontam com a necessidade de estabelecer, no ato de voar,uma relação diferenciada com sua atividade, em função das exigências pré-estabelecidas no sistemaaeronáutico atual. Essas exigências devem os estar levando a formular novos mecanismos dedefesas, que devem aliar-se aos já descritos neste texto, tendo em vista a manutenção de sua saúdemental numa perspectiva de procurar dar conta de si e de seu prazer consciente em voar.Em paralelo as novas regras e procedimentos exigidos a este homem, com odesenvolvimento tecnológico, faz-se necessário também considerar que se percebe muitoclaramente uma mudança radical nas relações de trabalho, em todos os seguimentos profissionais domundo contemporâneo, atingindo também, é claro, a atividade aeronáutica..As perspectivas empresariais na aviação, no nosso entender, têm tomado rumos e caminhosem que o sentimento de pertinência ao sistema no piloto, não está se fazendo presente, uma vez quetomadas de decisões nos níveis gerências não tem levado em consideração nem respeitado seusposicionamentos como executores da atividade do voar, o que tem gerado tensões a mais e sejuntam àquelas que são próprias a sua atividade profissional, ampliando suas preocupações.Na nossa “escuta” junto a este homem, tem sido freqüente um discurso queixoso:“precisamos de tranqüilidade, de melhores condições de trabalho, de mais treinamento, de maiorconfiabilidade nos equipamentos que usamos, de não voar cansados, de respeito aos nossos limitespsicofísicos, de termos melhores salários, para que possamos cuidar melhor de nossas famílias,precisamos ser reconhecidos profissionalmente e respeitados como seres humanos!”.Forças externas a este homem, que trabalha na aviação, tem provavelmente o levado aperceber-se quase alheio dentro do sistema aeronáutico vigente.Usando uma proposta teórica de BOHOSLAVSKY (1983), que transformamos para o nossopensar e aqui formulamos, o piloto/aviador vive uma “alienação profissional”, entendendo essaalienação como alguém que vislumbra, por trás do desmoronamento de suas ilusórias imagensvocacionais de piloto, as condições reais de produção numa sociedade capitalista. Alguém quepercebe a substituição de sua onipotência narcisista (“quero ser um comandante de uma grandecompanhia aérea, ser reconhecido profissionalmente, ter um bom salário, viver bem e ter minharealização total como ser humano”) pela “encruzilhada opcional” do medo do desemprego (ou dafalta de emprego), da necessidade de suportar excesso de carga horária, dos salários nãocompatíveis as suas expectativas e de sentir-se apenas um elemento a mais de um sistemaoperacional. Só que, a base da segurança deste sistema operacional está neste homem!A realidade o coloca num plano subjetivo de um “lamento”, por não encontrar mais em suaatividade, os canais necessários do prazer possível e tão desejado. E assim se percebe numacontradição difícil de ser superada. Ele fica entre sua realização pessoal e seus ideais de vida.Pensando nas circunstâncias que se fazem presentes nos dias de hoje, junto à aviação, pareceque os pilotos se defrontam com a sensação de que as leis e projetos que devem seguir, lhes são“estranhas”!Diante deste quadro descrito, torna-se mais difícil ainda manter um estado psíquico adaptadoàs circunstâncias do voar, acarretando em situações onde a vulnerabilidade humana se evidencia. Eas falhas/erros humanos fazem-se mais presentes, resultado de quadro sintomático de reação a umambiente nocivo a este processo adaptativo.As elaborações teóricas aqui formuladas querem reforçar a necessidade de tratarmos doserros humanos como sintomas e não causas. Partindo do pressuposto que, buscar entendê-los,permitirá uma orientação ao gerenciamento de ações, de forma que se faça uma real prevençãojunto ao homem e sua segurança no voar.Teóricos e estudiosos do fator humano na aviação têm classificado os erros/falhas desseshomens, em função dos deslizes, lapsos, equívocos e violações que os mesmos possam apresentarnuma dada situação em vôo. Entendendo os deslizes e lapsos numa categoria em que, a intenção écorreta mas a ação é incorreta, e os equívocos e violações numa categoria em que a intenção éincorreta.O esquecimento de um item de um checklist após o atendimento de uma chamada docontrole de tráfego, e o ajuste incorreto da altitude no seletor do painel quando a altitude correta éconhecida e a intenção era ajustá-la corretamente são exemplos típicos de lapsos e deslizesrespectivamente que o homem pode cometer. O corte do motor errado no resultado de uma análiseincorreta dos parâmetros é visto como equívoco e insistir em pousar mesmo quando a visibilidademínima não foi obtida na aproximação final é entendida como uma violação.Buscar compreender esses erros/falhas humanas seria questionar o que está significandoestes comportamentos expressos, uma vez que em todos eles motivos inconscientes na ação sefizeram presentes.Quando nos deparamos com situações de incidentes e acidentes na aviação, as análisesformuladas são dimensionadas pelas observações feitas de forma genérica naquilo que éconsiderado falha humana, resultado de um ato explicado pela perspectiva relacional do homemcom os elementos básicos que o permite voar, sua relação com a máquina, as condiçõesorganizacionais e psicossociais presentes no desenrolar dos fatos que culminam com o evento.Observamos que, embora as análises procurem oferecer uma dimensão de que osincidentes/acidentes não ocorrem a partir de uma única falha, seguindo a visão de MAURIÑO et al.(1995), mas de uma série de fatores que constroem esses incidentes/acidentes, ainda tem se focado afalha ou erro humano numa dimensão onde o indivíduo, especialmente o piloto, é responsabilizado,inclusive criminalmente, por um ato que, provavelmente, conscientemente não tinha intenção depermitir acontecer.Entendemos que os erros/falhas devem ser abordados de forma diferenciada, considerandotodos os fatores que se fazem presentes nas relações efetivadas pelo homem na atividade de voar,analisando suas conseqüências e a forma de como seus efeitos podem ser revertidos.Enfrentar de forma sistemática as melhorias desejadas de segurança no voar, torna-seextremamente difícil na medida em que as organizações e as pessoas que as fazem, ficam commedo de entender as falhas humanas segundo um padrão verdadeiramente sistêmico. E reforçandouma cultura de segurança voltada para a culpa.Acreditamos que devemos procurar entender que, as falhas não ocorrem isoladamente, no ounum indivíduo, e que quando estão relacionadas ao indivíduo precisamos pensar no mesmo deforma integral, um ser biológico, psíquico e social, que se integra e busca adaptar-se a situação devôo, mas que também necessita de condições que favoreçam está adaptação.Em nossas elaborações, voltadas para o entendimento do homem na aviação, sugerimos queo elemento propulsor motivacional do vôo está no desejo e no conseqüente prazer consciente que seobtém ao voar. A complexidade existente nesse sistema motivacional, que parte do inconscientepara o consciente do homem, percorrendo toda sua estrutura psíquica, necessita de um ambiente queo favoreça encontrar as condições de manutenção do bem estar interno e externo, e assim permita oprocesso adaptacional adequado e seguro no seu ato em voar.Nosso questionamento básico aqui é: o que leva esses homens a executarem umprocedimento inadequado que pode levá-los à morte, deixando de lado sua pulsão deautopreservação, regido, como já descrito anteriormente, pelo Princípio de Realidade?Procurar uma resposta, para esta pergunta, passa fundamentalmente pelo próprio homem/aviador, seja ele iniciante ou experiente na atividade de voar, pelas suas características depersonalidade, que propõem uma forma de relacionar-se com o ato de voar no encontro com seudesejo e prazer de voar, e também no como este encontro está sendo permitido.Questionamos também as organizações e empresas em geral, ligadas à aviação eresponsáveis pelos vôos desses homens. Em que condições estão sendo permitidas esses homensvoarem?Podemos supor, dentro da abordagem teórica aqui proposta e dentro da idéia de que ohomem precisa manter-se equilibrado psicologicamente conservando fortalecida sua estruturapsíquica, que o sujeito que busca o prazer imediato, gerado pela ultrapassagem dos seus limites,pode estar buscando a superação do "perigo" que o excita e, inconscientemente ignorando suaautopreservação, efetivando um descompasso e a desintegração de suas ações no voar.Principalmente por não está vivenciando o estímulo, consciente e necessário, motivacional, o prazerem voar.Diante desse pensar, um tanto por demais subjetivo, mas não menos importante paraentendermos o homem e sua atividade no vôo, acreditamos estar contribuindo com a segurança devôo e alertando que esse homem, hoje tão pouco reconhecido no seu papel de piloto/aviador no diaa dia de seus afazeres profissionais, em um dado momento, regido essencialmente pelo Princípio dePrazer, possa inconscientemente buscar a essência do seu desejo e prazer em voar e a satisfaçãoimediata desse prazer, que sabemos, deve ser adiado na medida que garante a preservação de suavida.Procurando também pensar caminhos para tudo que aqui foi refletido, cremos que temosalgo a devolver a este homem. Entendemos, assim como PATT Y MOIA (1989) que colocam: só háum sentimento coerente no processo adaptacional do homem que voa, e nele encontramos apossibilidade de obtermos maior segurança no seu vôo: “la alegria de volar ”!Cremos também é necessário retornamos ao entendimento das necessidades desse homem epoder mantê-lo adaptado psicofisiológica e socialmente em sua atividade, assim, estaremosoferecendo a possibilidade concreta de manter a sua segurança no voar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOHOSLAVSKY, Rodolfo. Vocacional, teoria, técnica e ideologia. São Paulo: Cortez 1983.FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.LAPLANCHE, J., PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1988MAURINO, D. E. et al. Beyond aviation human factors: safety in high technology systems. Hants:Avebury Aviation, 1995. 169 p.PATT,H. O. L. Psiquiatria aeronautica sistemica. Buenos Aires: Cargieman, 1985.____________ Y MOIA, P.I. Sindromes de desaptación secundaria al vuelo. Buenos Aires:Sociedad Interamericana de Psicologia Aeronáutica, 1989.BIBLIOGRAFIA CONSULTADAABBOTT, Kanthy H. Erro humano e gerenciamento da segurança de vôo. Revista SIPAER, n.73,mar./maio 2000.BATISTA,C.G., PEREIRA, M.C. A escolha profissional e a identidade do piloto In: OLIVEIRA, I.Construindo caminhos, experiências e técnicas em orientação profissional. Recife: Ed.Universitária da UFPE, 2000.FREUD,Sigmund. Esboço de psicanálise; Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1998.GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1998GONZALES, C.B., SOUGEY, M.C.P. Automação/desejo e prazer de voar. Revista SIPAER, n.73,mar./maio 2000.

A AVIAÇÃO CONTEMPORÂNEA SUJEITO, CULTURA E SUBJETIVIDADE


MARIA DA CONCEIÇÃO PEREIRA
Mestra em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco
Assessora em Fatores Humanos – Segundo Serviço de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (SERIPA2)
ANA LÚCIA FRANCISCO
Doutora em Psicologia Clínica
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco

RESUMO

Este artigo procura aproximar os conceitos de sujeito, cultura e subjetividade e o mundo aeronáutico,
propondo uma leitura dos processos de subjetivação da aviação na contemporaneidade.
Essa leitura se dá, desde dos tempos primordiais da aviação diante do mito de Dédalo e Ícaro chegando a uma
análise que faz uma indicação de um novo processo de subjetivação na aviação sem mitos nem deuses.
Busca-se entender essa subjetivação no sentido de que ela vem se produzindo não só no registro dos processos ideológicos que permeiam e fazem funcionar a aviação no mundo atual, mas está, também, presente nos “corações dos indivíduos”: os sujeitos da aviação, que vêm fazendo e estão construindo essa mesma aviação, carregando consigo um modo de ver o mundo e de poder se articular, cada qual trazendo suas próprias condições de singularidade, criando assim uma ordem social produzida e articulada, e promovendo transformações diante de novos objetos e aparatos tecnológicos (novas aeronaves), novos conceitos e novas técnicas; uma aviação que se expressa para e na sociedade e, especialmente, naqueles que a fazem.



1-INTRODUÇÃO

Ao pensar em elaborar um texto que permitisse aproximar os conceitos de Sujeito, Cultura Subjetividade e o Mundo Aeronáutico, procuramos compreender subjetividade seguindo as idéias de Guattari e Rolnik (2001) que entendem processos de subjetivação como um campo de forças e fluxos de diferentes níveis que afetam os indivíduo e cuja afetação, se expressa nas figuras de subjetividade que podem se fazer presentes num gesto, num comportamento, num modo de pensar, de agir, enfim de estar no mundo.
Estes autores consideram a subjetividade de natureza “Maquínica”, pois ela é essencialmente fabricada, modelada, recebida e consumida e propõem: “ao invés de ideologia, prefiro falar sempre em subjetivação, em produção de subjetividade” (GUATTARI e ROLNIK, 2001, p.25). Assim, objetivamos no presente texto, pensar na produção da subjetividade dentro da aviação e do mundo aeronáutico.
Essa subjetividade vem se produzindo não só no registro dos processos ideológicos que permeiam e fazem funcionar a aviação no mundo, mas está, também, presente nos “corações dos indivíduos”: os sujeitos da aviação, que vêm fazendo e estão construindo essa mesma aviação, carregando consigo um modo de ver o mundo e de poder se articular, cada qual trazendo suas próprias condições de singularidade. Estas condições se expressam através de seus desejos, por um gosto de viver, por uma vontade de construir o mundo a que pertencem. E, assim, vão criando uma ordem social produzida e articulada, em que microfísicas de uma cultura engendram domínios de um saber fazer voar, permitindo mudanças e promovendo transformações diante de novos objetos e aparatos tecnológicos (novas aeronaves), novos conceitos e novas técnicas; uma aviação que se expressa para e na sociedade e, especialmente, naqueles que a fazem.


2- A ORIGEM MITOLÓGICA DA AVIAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO

Para fazer a ligação do sujeito da aviação, da cultura e da construção da subjetividade, acreditamos ser necessário realizar uma viagem, poderíamos até mesmo dizer, um vôo teórico e um retorno no tempo da mitologia e buscarmos nos mitos de Dédalo e Ícaro as origens do desejo de voar. Este recuo nos parece relevante na medida em que acreditamos que, ainda hoje, é este mito que influencia e se revela no sujeito da aviação e na cultura aeronáutica.
Vamos nos remeter aos idos do séc. XLII a.C., quando Púbilo Ouvídio Nasão, em suas Metamorfoses (BRANDÃO, 1994), narra um episódio consagrado da Mitologia greco-latina. Segundo esse autor, as mitologias concentram todos os símbolos que representam os valores culturais e uma dada sociedade e que são responsáveis por sua identidade cultural, uma vez que tornam possível o movimento de conscientização, mesmo que simbolicamente, daqueles valores impressos no inconsciente geral de seus componentes: "Com o recurso da imagem e da fantasia, os mitos abrem para consciência o acesso direto ao inconsciente coletivo", (JUNG apud BRANDÃO, 1994, p.86). Não obstante um conjunto de mudanças pertencentes ao mundo da pós-modernidade, promovendo novas relações dentro da atividade aérea e com os sistemas de segurança ao voar, ainda podemos perceber o quanto a origem mitológica do voar está presente no imaginário daqueles que fazem a aviação.
Assim sendo, a partir desta perspectiva, nos debrucemos sobre o relato mitológico de Nasão:

Esse Dédalo era ateniense, da família real de Cécrops, e foi o mais famoso artista universal, arquiteto, escultor e inventor consumado. É a ele que se atribuíam as mais notáveis obras de arte da época arcaica, de que fala Platão no Mênon. Mestre de seu sobrinho Talos, começou a invejar-lhe o talento e no dia em que este, inspirado na queixada de uma serpente, criou a serra, Dédalo o lançou do alto da Acrópole. A morte do jovem artista provocou o exílio do tio na ilha de Creta. Acolhido por Minos, tornou-se o arquiteto oficial do rei e, a pedido deste, construiu o célebre Labirinto, o grandioso palácio de Cnossos, com um emaranhado tal de quartos, salas e corredores, que somente Dédalo seria capaz, lá entrando, de encontrar o caminho de volta. Louco de ódio pelo acontecido (Dédalo, em dado momento, havia planejado com Ariadne a libertação de Teseu, filho de Ageu, rei de Atenas e oponente do rei de Creta), Minos descarregou sua ira sobre Dédalo e o prendeu no Labirinto com o filho Ícaro, que tivera de uma escrava do palácio, chamada Náucrates. Dédalo, todavia, facilmente encontrou a saída e, tendo engenhosamente fabricado para si e para o filho dois pares de asas de penas, presas aos ombros com cera, voou pelo vasto céu, em companhia de Ícaro. (BRANDÃO, 1994, p. 94).

Mas Ícaro, jovem rapaz movido pelo deslumbramento de sua condição de ultrapassar seus próprios limites e viver o prazer de voar, desconsiderou todos os avisos do pai Dédalo, de que se mantivesse afastado o bastante da superfície do mar, para que, na fuga do Labirinto, as penas de suas asas não se encharcassem, e do sol, para que a cera não derretesse, soltando as mesmas. Aproxima-se demasiadamente do sol e permite que o calor desmantele suas asas, fazendo-o precipitar ao Mar Egeu, que passou, a partir de então, se chamar Mar de Ícaro.
O que nos remete essa estória mitológica é que o processo de formulação de uma motivação, a atividade aeronáutica, se faz presente no homem desde os tempos mais remotos, aqui dimensionada pelo mito de Dédalo e Icaro. Este mito também caracteriza a vivência do primeiro acidente aeronáutico: Ícaro morre por não cumprir as normas e regulamentos impostos pelas prescrições de vôo que teria que estar atento e que foram normatizadas por seu pai, criador das asas, para possibilitar não só que ele vivesse o prazer e o poder trazido pelo vôo, mas, também, para garantir seu prazer consciente na continuidade de sua vida e na perspectiva de um vôo seguro.
Vamos aqui, também, nos inspirar no perfil caracteriológico para pilotos desenvolvido por Leimann Patt (1987) fundamentado na mitologia. Embora esse estudo dimensione quatro perfis mitológicos envolvendo, assim, outros mitos que também, por outras formas, realizaram vôos, vamos nos deter apenas no mito de Dédalo e Ícaro, pensando que esse mito primordialmente expressa o desejo e o prazer de voar no homem e as suas relações primitivas específicas com a situação de um vôo.
Segundo Leimann Patt (1987, p.132):

Dédalo é o protótipo do piloto engenhoso, hábil, inteligente, criterioso e prudente, que conhece seus limites e seus ‘mínimos’ e os respeita, que conhece os perigos aeronáuticos e não corre riscos desnecessários, predomina em sua motivação os aspectos utilitário e social do vôo antes dos demais aspectos. Ícaro é imprudente, imaturo, insaciável, que se exige de si mesmo e de sua máquina além de sua resistência, não mede riscos porque não tem consciência deste risco.

Dédalo representa uma conduta operativa de um piloto responsável e profissional, respeitoso com as regras, normas e com seus procedimentos, sendo, portanto emocionalmente equilibrado.
Leimann Patt (1987), descreve Ícaro como aquele que expressa imprudência de forma típica, propenso a erros por sua falta de critérios, de personalidade adolescente e imaturidade no manejo de seus afetos.
Descritos os perfis caracteriológicos a partir desses mitos, voltemos à nossa reflexão naquilo que especialmente queremos levantar como ponto de referência: a construção da subjetividade na aviação e na cultura aeronáutica desde os tempos mais remotos. Vejamos, primeiro: o sujeito inventado na aviação dos tempos primordiais se formulou muito especialmente numa imagem simbólica representada naquele que levado pelo seu desejo de voar e deslumbrado por sua própria condição de elevar-se aos céus, ultrapassou não só seus limites, mas as próprias condições pré-determinadas para a segurança de seu vôo. O mito símbolo que foi perpetuado no mundo aeronáutico como figura e imagem representativa e significativa foi mais Ícaro que Dédalo.
O que queremos suscitar, aqui, não é a perspectiva de pilotos identificados inadequadamente e/ou inconseqüentes quanto à sua segurança de voar por lembrarem Ícaro como símbolo; porém, pensando na significação vivida dos tempos primordiais da aviação, o que escutamos nos discursos dos pilotos, ainda hoje, e mesmos naquelas pessoas que pretendem tornarem-se aviadores, é a busca de um prazer, a busca da realização de um desejo, de um feito que efetivamente os fazem sentir ultrapassando suas condições terrenas, percebendo-se como invulneráveis diante da possibilidade da morte, vivendo algo que os transformem em um quase Deus poderoso ou o próprio Ícaro deslumbrado.
Retomando a vivência de Ícaro, ao perceber-se em vôo, pensemos que sua condição de deslumbramento trazia um prazer e uma alegria própria de um jovem que regido por sua imaturidade desconhecia os riscos efetivos de voar.
Chegamos a um ponto que cremos ser importante, pois nos auxilia na compreensão da ação do sujeito aviador de hoje, que expressa comportamentos, agindo sobre seu presente e seu real, diferenciando-se e se reconhecendo singular em sua existência, dentro da condição de um tempo que foi determinado e historicamente constituído, subjetivado, possivelmente em função deste mito.Isso nos permite inferir que, na aviação, a história do aviador vem se constituindo e se construindo, a partir de um sujeito na perspectiva da vivência do poder e do prazer ao voar e, podemos pensar, que a sua cultura se desenvolveu num movimento em torno deste mesmo sujeito.
Eizirik (1995) coloca que a subjetividade, que sempre foi um tanto rechaçada pela “mítica da objetividade” da ciência, nos remete para uma questão de possibilidades de reflexão sobre o campo do saber da própria existência humana. Assim, estamos aqui pensando a existência da aviação como fenômeno que faz parte e que tem um sentido para o homem na sua humanidade, entendendo humanidade como a capacidade que o homem tem de atribuir sentidos ao longo de sua história e de ser capaz de fazer ou elaborar sentidos novos, construindo, neste caso, um social na aviação em que singularidades se organizam através dos sujeitos que a vivem e a fazem.
Neste viver e fazer sentidos, ao mesmo tempo, os sujeitos se constroem e se descontroem na vivência de turbulências e vibrações de um novo, quando esse novo se faz necessário. O sujeito se desfaz e se refaz, a cultura mantém um movimento de interconexões de laços e de novos universos de referencias, num re-simbolizar o que está posto. A aviação dos tempos atuais não pode ser mais a mesma dos tempos primordiais, por tudo que vem afetando-a, tanto diante do desenvolvimento tecnológico instrumental, quanto diante dos novos processos de gerenciamento administrativo econômico no contexto de uma atividade produtora de bens e consumo de uma sociedade ainda dimensionada pelo capital.
A aviação vive novos processos de subjetivação fazendo emergir novas culturas e novos sujeitos.


3- A AVIAÇÃO DA PÓS-MODERNIDADE: UMA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE SEM MITOS NEM DEUSES.

Vivemos num tempo atônito que, ao debruçar-se sobre si próprio descobre que seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não ser, ora pensamos não Ter ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já ser, ora pensamos nunca vir a ser (SANTOS, 1985).

O sujeito da aviação da pós-modernidade parece ser aquele que tenta sustentar seu desejo de voar em tempo de crise, em um momento em que as transformações estão postas, porém ainda não elaboradas, vivendo, assim, um sofrimento ainda pouco dimensionado. Parecem cansados de lutar contra as perdas incessantes de condições anteriores, de uma aviação que trazia um poder para si, um poder de sedução diante do próprio mundo aeronáutico e da sociedade em que estava inserida e que, também, oferecia a esse sujeito um sentido diferenciado em sua existência.
Antes, este sentimento de poder o colocava numa condição de mito ou um quase Deus.
Hoje, ele passa a ser espectador do seu avião extremamente automatizado, que só necessita que gerencie seu sistema tecnológico de forma passiva, porém eficiente, com eficácia e precisão. Assim, torna-se um mero trabalhador de um sistema exigente, normatizado, padronizado e globalizado, gerido essencialmente por uma subjetivação capitalista, que não mais oferece a suposta condição de herói trazida pelos mitos e nem a de prazer sem dor.
Passando este sujeito a existir num contexto de um mal-estar social em função de condições de uma aviação globalizada e universalizada, numa cultura individualista e pouco solidária onde se vê instalado, tendo que lidar com incertezas e percebendo-se como um sujeito desalojado, perdido em sua navegação, quem sabe com “desorientação espacial”, à procura de um aeródromo que lhe permita pousar seguro.
A situação de crise da aviação, hoje, reforça a possibilidade que esse sujeito saia de sua condição cultural de um dado país e uma dada região e vá voar em lugares distantes para continuar sobrevivendo e mantendo-se em um emprego. Ele pode sair do Brasil e ir voar nos Emirados. Sua desterritorialização é literal.
Segundo Leimann Patt (2003), o piloto da pós-modernidade capta uma espécie de vazio, fruto de uma perversão dos papéis nas tomadas de decisões que deposita um mando nas mãos de um poder invisível, o da economia global, e vive uma pressão moral no trabalho que pode ser desencadeadora desse sofrimento social que o neoliberalismo produziu, surpreendendo os trabalhadores da aviação e não só a eles.
O que se processa, também, dentro da aviação do mundo de hoje, ainda é a busca daquela essência identitária, vivida como uma sólida morada de um tempo que não mais existe. O tempo dos heróis, deuses e mitos não tem mais espaço nos céus.
O cenário avançou da perspectiva de aeronaves que eram conduzidas pelo domínio cognitivo e motor dos pilotos levando-os a dimensionar sua relação com a máquina como uma mimetização onde no manejo, na condição de manobrar e segurar o manche, a força da máquina se juntava à condição humana onipotente de eleva-la aos céus como num só corpo. Hoje, a máquina já opera sem a necessidade concreta da força motora e cognitiva deste mesmo homem.
O cenário evoluiu tanto no que diz respeito à demanda de passageiros como na dimensão de um trafego aéreo, antes controlável por condições convencionais de um fluxo mais regional que internacional, aliando-se ao crescimento e exigência do mercado econômico, entre tantos outros pontos que fizeram fluir elementos que “desestabilizaram” o próprio sistema aeronáutico, existindo a necessidade da elaboração de um novo script.
Um script que deverá fomentar a possibilidade de “novas proteções” que servirão de apoio para os efeitos das turbulências que se efetivarão ao longo da trajetória de seus vôos, enquanto aviação do mundo pós-moderno, em que cada sujeito que faz a aviação possa compreender os processos de mudanças que estão ocorrendo ao longo da história da aeronáutica enquanto atividade e trabalho humano, vislumbrando suas próprias potencialidades e possibilidades de revisão de seus conceitos internos. Assim poderá formular um novo script, que vai se traduzir especialmente nos novos processos de subjetivação que vão se fundando, justamente na perspectiva de um sujeito da aviação não absoluto nem herói nem Deus, mas que possa apontar suas infinitas condições de criação e re-criação diante de suas atividades, permitindo formulação de novos significados e novos sentidos, que possam potencializar a sua vida e sua existência no meio aeronáutico.
Trazendo Suely Rolnik[1] (1992):

a subjetividade deste homem é intrinsecamente processual [...] e ela seria a própria processualidade, aquela heterogenese, repetição diferenciadora, através da qual vai se constituindo um si mesmo, sempre outro, uma espécie de estrangeiro.

O homem contemporâneo, vivido no sujeito da aviação, precisa ir de encontro a esse estranho, “encontrá-lo”, uma vez que ele lhe aponta para uma dimensão de uma alteridade que vai tomar corpo em sua existência, que é seu “próprio devir”.
A cultura que possivelmente se produzirá será permeada por essa condição de re-significação e de sentido novo, tanto para o sujeito como para a própria aviação em seu processo constante de subjetivação.
Creio que este texto pode ser finalizado deixando uma reflexão aberta, sem fronteiras e sem planos de rotas, que embora sejam tão necessárias para a segurança de um vôo no real, nas idéias aqui formuladas, abrem-se para infinitas rotas e possibilidades que são próprias do ser humano enquanto sujeito que dá sentindo ao seu mundo.
Pensemos nas palavras trazidas por Enriquez (2001, p.35):

O sujeito é, portanto, um ser capaz, ao mesmo tempo sapiens, demens (objeto da hybris), ludens e viator, homem, portanto, de sabedoria e loucura, do jogo e da vagabundagem, respirando a plenos pulmões um ar salubre, dando um sentido mais puro às palavras da tribo (MALLARMÉ), interessando-se mais pela germinação das coisas do que pelos resultados tangíveis, inebriado pela diversidade da vida e capaz de percebe-la, por tanto, homem que sabe desposar suas contradições e fazer de seus conflitos, de seus medos, de suas metamorfoses a própria condição de sua vida, sem dominar o caminho que toma nem as conseqüências exatas de seus atos; homem apto a recolocar em jogo sua vida e correr riscos.

Correr riscos, buscar prazer e poder foi a dimensão primordial na aviação e compõe a construção de seu sujeito, de sua história e de sua cultura.
Estamos e estaremos traçando “paisagens infinitas” de subjetivação na aviação e para tanto, parece-nos ser importante entender a “cartografia”, as “forças e fluxos” em que essas paisagens estão inseridas, para que possamos avaliar as condições de vôo do homem e qual o seu papel e possíveis formas de ação na atividade de voar no agora e no futuro.


REFERÊNCIAS

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______. Los factores humanos en Iberoamérica: ó las consequencias de la globalización Asimétrica. (2003). Disponível em: <www.CRMYFFHH.com.ar> Acesso em: Agosto de 2003.


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BIBLIOGRAFIA

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WINNICOTT, D. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed, 1993.

FATORES HUMANOS OU HUMANOS FATORES

FATORES HUMANOS OU HUMANOS FATORES ?
Maria da Conceição Pereira
Psicóloga
l



Acompanhando o desenvolvimento da aviação no mundo, o que se tem observado é o avanço, especialmente no contexto da tecnologia aeronáutica voltada para oferecer condições cada vez mais eficientes, junto aos aparatos artificiais que voam. Rapidez e precisão são dimensionadas na busca do aperfeiçoamento dessa tecnologia e do atendimento às demandas específicas de um mundo regido, essencialmente, pela economia de um mercado globalizado e com exigências rápidas .

Em paralelo está o homem que atua com essa tecnologia. Aquele que hoje tem a incumbência de gerenciar esses aparatos artificiais ultramodernos e em sua condição humana de ser finito, falível e sensível, mostra-se como o componente crítico do sistema aeronáutico, por isso, sobre ele recai toda uma preocupação diante de questões que envolvem a segurança de um vôo.

Nesse contexto, é pertinente reportar-se a uma análise crítica proposta por Dejours, psiquiatra e psicanalista francês, sobre o conceito de fatores humanos dimensionados no meio das ciências técnicas e tecnológicas, a qual se faz presente no meio da comunidade aeronáutica mundial.

O conceito de fatores humanos na aviação emana das ciências tecnológicas e carrega, considerando as críticas de Dejours, um reducionismo e um cientificismo, onde se têm esquecido aspectos éticos e políticos que efetivamente estão relacionados à complexidade humana e que concretamente também dimensionam suas ações e desempenho.

Talvez seja o momento de avançar na possibilidade de rever esse conceito aproveitando um pouco mais do que as ciências humanas e as ciências do trabalho têm oferecido para ampliar essa compreensão, voltada às questões humanas na aviação.

Onde se dá o reducionismo dos Fatores Humanos ?

Esse reducionismo se dá na medida em que essa noção fica estreitamente associada à idéia de erro, falha, falta cometida por operadores dos sistemas, onde os aspectos conceituais que tornam essenciais o respeito da própria condição humana termina por ser percebido dissociado de questões de sua subjetividade, singularidade, a promoção de sua saúde e segurança referentes a estes seres humanos em situação de seu trabalho na aviação.

As máquinas voadoras tornaram –se cada vez mais sofisticadas e automatizadas, e, às vezes, a idéia que passa nesses avanços tecnológicos é a tentativa de se minimizar o erro humano, pensando que afastando ou controlando tecnologicamente o homem, diante de ações mais operacionais/técnicas, junto a sua máquina, garante-se a possibilidade de se evitar os seus possíveis erros.

Verifica-se que existe uma preocupação, no contexto aeronáutico, da busca do controle do erro humano diante de suas ações nas operações aéreas. A preocupação dos estudos vêm focada na contribuição dos fatores humanos, nos processos em que se acredita desenvolver o chamado “erro humano”. A solução estabelecida fica, quase sempre, centrada na capacidade de minimizar e ou controlar os efeitos dessas ocorrências baseada na tecnologia, esquecendo-se a dimensão do humano.

Acredita-se que seja preciso ir além de simplesmente dimensionar desvios, falhas , lapsos , faltas e violações, no contexto da confiabilidade humana.

Até o momento, o homem, enquanto operador, é visto como o menos confiável. Avançando nos conceitos relativos ao humano na aviação, é necessário deter-se mais na perspectiva do homem como agente de ação não programável, de flexibilidade com criatividade, potencialmente aquele que pode atenuar falhas iminentes e assumir situações imprevistas possível diante dos sistemas.

Hora, se hoje a idéia é de um “pensar sistêmico” no mundo aeronáutico, por que, na prática do desenvolvimento de ações pró-ativas, avança-se tanto nos contextos tecnológicos e se caminha tão lentamente diante de práticas administrativas dos recursos humanos desse mesmo sistema?

Volta-se, então, a questionar como Dejours, Fatores Humanos ou Humanos Fatores na aviação?

A compreensão dos fenômenos humanos, em sua essência, no contexto aeronáutico significa também encontrar o entendimento das relações subjetivas existentes dos sujeitos componentes da aviação, inseridos numa dimensão cultural que pode ser geradora de atitudes e comportamentos incompatíveis com a Segurança de Vôo. Daí entende-se o erro como sintoma coletivo do sistema.

Entender os erros humanos como um fenômeno humano é mais que minimizar possibilidades iminentes de errar, é ir além dos Fatores Humanos, é buscar os Humanos Fatores na aviação.
A aviação tem mudado de forma tão veloz quanto seus próprios aviões se modificaram, no que se refere à tecnologia, porém, o homem, fisiologicamente, mantém sua estrutura básica de ser humano nas mesmas condições anteriores a estes avanços. A evolução psicossocial do homem não ocorre na mesma rapidez que as suas próprias criações diante da tecnologia.

Edith Seligmann Silva, cientista brasileiro da condição humana com relação ao trabalho, diz, com muita precisão, que as configurações inesperadas do mundo do trabalho dos tempos de hoje desafiam as capacidades humanas de interpretação e tomadas de decisões participativas nos contextos do trabalho sofisticado, e entende-se a dimensão da aviação de hoje num padrão de sofisticação que vem exigindo daqueles que a fazem uma permanente disponibilidade de lidar e superar imprevistos e incertezas no cotidiano de suas atividades.

Partindo desse pressuposto, avançar tecnologicamente é importante e faz parte da evolução da humanidade, porém não se pode perder de vista que cada avanço tecnológico gera no homem novas formas de comportamentos, novas formas de subjetivação e novas respostas nas suas ações.

As ações pró- ativas que são necessárias, diante das questões humanas na aviação, devem- se concentrar, especialmente, no processo de cuidar desses mesmos seres humanos, no sentido de salvaguardar sua condição psicofísica sócio/ econômico e cultural, para que possam assumir suas vulnerabilidades, manter maior atenção em suas complexidades humanas, diante de suas atividades, como gerentes , pilotos , controladores , mecânicos, comissários e tantos outros seres humanos que fazem a aviação. È preciso encontrar também as condições efetivas numa postura ética e uma política solidária nas organizações em que, concretamente, a Indústria Aeronáutica em todos seus aspectos se coloque efetivamente comprometida com a segurança de vôo e fazendo dela uma prática social em prol do desenvolvimento da humanidade, desta forma:

O caminho se dá avançando dos Fatores Humanos para os Humanos Fatores presente nas atividades aeronáutica.

Este trecho de Saint -Exupéry do livro "Terra dos Homens", deixa uma bela reflexão sobre o avião e sobre a aviação como uma atividade humana. "Sem dúvida, o avião é uma máquina. Mas que instrumento de análise ! Esse instrumento nos permitiu descobrir a verdadeira fisionomia da terra. ...Libertados, desde logo, das servidões queridas , libertados da necessidade das fontes , apontamos a proa para o alvo longínquo. Só então, do alto de nossas trajetórias retilíneas, descobrimos o embasamento essencial, o fundo de rocha, de areia, de sal em que, uma vez ou outra, como um pouco de musgo entre ruínas, a vida ousa florescer.Então, somos transformados em físicos, em biologistas, examinando essas civilizações que enfeitam o fundo dos vales e, às vezes, por milagre, estendem-se como parques onde o clima as favorece. Então, podemos julgar o homem por uma escala cósmica, observando-o através de nossas vigias como se fora através de instrumentos de estudo. Então relemos a nossa história."
É preciso pensar como Exupéry, o avião é um instrumento, nada mais que um instrumento, e que só o homem que o “criou” pode transformá-lo, num sábio instrumento!





Qual o lugar do Erro da Aviação ?

QUAL O LUGAR DO ERRO NA AVIAÇÃO?

Tolerância – Redução – Contenção
Texto publicado na revista DÉDALO 2008 -Aviação do Exercito Brasileiro


Historicamente, o conceito que se estabeleceu é que não existe espaço para o erro, no mundo da aviação. No que diz respeito aos estudos relativos ao caminhar do homem nessa atividade, depara-se com uma tradição fundamentada na idéia de que ele deveria ser um super-homem, imune à possibilidade de cometer erros. No entanto, a ciência, por meio dos vários ramos que estudam o comportamento humano, vem mostrando que não há pessoas imunes ao erro. No momento em que ocorre um acidente aeronáutico, não mais se deve analisar a condição humana e seus erros de forma isolada; há que se considerar como os erros se processam, em que circunstâncias ocorrem e de que forma tais circunstâncias podem ser compreendidas. Essa compreensão é necessária para que se possam implantar mudanças que permitam mitigar a ocorrência de erros semelhantes.

Haverá sempre vulnerabilidades nas operações realizadas por um homem. Por mais bem pensados e elaborados que sejam os projetos, treinamentos e capacitações, não há como contemplar de forma inteiramente adequada os fatores que envolvem a condição humana. O que a indústria aeronáutica vem implementando, e deve procurar consolidar cada vez mais, é a idéia de equilíbrio entre os sistemas ditos confiáveis e a condição em que os operadores promovem as compensações nas falhas dos projetos. Não é retirando o homem da operação que se consegue prevenir os erros. James Reason (1997) observa que o erro que leva ao acidente não advém exclusivamente de uma perspectiva pessoal operacional; é resultado de interações de situações imperfeitas do sistema que já estão presentes na organização e que não estão sendo observadas de uma perspectiva apropriada.

Na tendência de analisar os atos inseguros que se configuram no ativo de quem executa as atividades na ponta da linha nas organizações, não são considerados os erros de decisões gerenciais, de supervisões (quando existem), as condições da administração e a má gestão dos recursos disponíveis (humanos, materiais etc.). As organizações nem sempre estão preocupadas em procurar a adequação de suas decisões relativas aos processos organizacionais, ou não estão preparadas para isso. Há necessidade de efetivar cortes de custos e equipamentos, de adotar políticas promocionais, políticas de procedimentos e metas, mas com o devido cuidado de manter o gerenciamento dos riscos. Deve-se evitar o estabelecimento de condições que possam propiciar cenários para o erro humano, ou para erros gerenciais que só se revelam posteriormente, a partir da vivência de um incidente (quando reportado e analisado) ou de um acidente.

O que é preciso levar em consideração é que, com a evolução da tecnologia e da indústria aeronáutica, nos últimos anos, o erro humano deve ser pensado de uma nova forma. Hoje, o erro é reconhecido como inevitável, no desempenho humano. Nas novas configurações de sistemas sociotecnológicos, é preciso trabalhar à luz de um conceito de tolerância ao erro e de resistência ao erro. Precisamos ir além do erro, adotando as idéias já dimensionadas sobre o que envolve as condições organizacionais, na perspectiva da segurança em prol da gestão do erro.
Se nos situarmos em reportes e especificações de situações que podem revelar possibilidades de erro, perceberemos que, nos palcos de nossas organizações aeronáuticas, não dispomos de uma cultura que alimente o sistema de informação sobre erros e sobre o que estamos fazendo com eles. Temos, ainda, baixíssimos níveis de reportes e de dados de controle baseados em experiências reais, nas organizações. Não nos detemos, efetivamente, na análise de fenômenos expressos nos comportamentos dos operadores na rotina de trabalho, de forma a encontrar caminhos de gerenciamento efetivo dos erros, com o objetivo de contê-los ou reduzi-los, ou, ainda, de promover medidas destinadas a limitar suas conseqüências adversas, que continuarão a ocorrer.
Isso nos faz pensar que “as análises de acidentes não incluem a perspectiva das condições em que os erros foram revistos e recuperados”. Entretanto, teríamos a possibilidade de gerenciamento da dimensão e do aprendizado somente a partir de observações do comportamento expresso e da forma como a possibilidade de errar está sendo, não só estudada, como também vivenciada na realidade das ações do operador, dos seus gerentes e dos responsáveis pelos comandos das organizações.

Segundo Reason (1997) e Dekker (2002), esta é uma visão atualizada do erro humano: errar como sintoma de problemas interiores no sistema, tanto no humano individual (o operador, o gerente) como no humano coletivo (a organização).


Deveríamos procurar, não somente a explicação das falhas ativas humanas, mas também a compreensão de como se expressam e onde aparecem. Especialmente, deveríamos buscar o entendimento de que as decisões humanas, na configuração de suas falhas ativas, mesmo daquelas consideradas “absurdas”[1], no instante em que foram executadas e em sua condição de atividade de ação expressa foram pensadas como corretas, por aqueles que as assumiram naquela situação.

A redução do erro inclui medidas destinadas a limitar sua ocorrência. Como isso não acontecerá de forma plenamente bem-sucedida, há necessidade de contenção do erro e de implementar medidas para limitar as conseqüências adversas dos erros que podem continuar a ocorrer. Bert Ruitenberg (2003) aponta algumas dessas medidas:

- Medidas para minimizar o erro e responsabilidade do indivíduo ou equipe;
- medidas para reduzir o erro de particular vulnerabilidade;
- medidas para descobrir, avaliar e, em seguida, eliminar a produção de erros, fatores estes que acontecem dentro do local de trabalho;
- medidas para diagnosticar fatores organizacionais que permitem a geração de erros produzidos dentro do indivíduo e das equipes;
- medidas para aumentar a tolerância ao erro nos locais de trabalho e sistemas; e
- medidas que tornem mais visíveis as condições latentes para aqueles que operam e gerenciam os sistemas.

Talvez um dos grandes problemas que ainda vivenciamos no mundo aeronáutico, especialmente no Brasil e América Latina, é a falta de uma gestão planejada para o erro. Ainda ficamos centrados nas falhas ativas e não buscamos a compreensão do que apresenta o latente daquele incidente ou acidente dentro das organizações. Focamos no pessoal, e não no situacional. Os que operam no local onde acontece a falha ativa tornam-se “os bodes expiatórios”, aqueles que devem ser perseguidos. Falta, especialmente, a sistematização dos erros, e parece que todos os focos de pensar os erros se configuram como se os fatores fossem aleatórios.

Nos processos investigativos de acidentes, a sensação que se tem é de que estamos analisando fatos e de que não contemplamos as condições de interação de todos os aspectos pertinentes a um processo que revela uma atuação humana. Nesses aspectos, vislumbram-se fatores humanos, interfaces que passam por dimensões da forma como o homem usa suas habilidades, as quais estão sujeitas ao seu contexto histórico, social e cultural.

Erros configuram-se em diferentes tipos, processam-se em diferentes mecanismos psicológicos e em diferentes segmentos ou partes de uma organização, são produtos e resultados de situações favoráveis ao estabelecimento de condições para sua ocorrência.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DEKKER, Sidney. Inglaterra: Ashgate Publishing Ltd., 2002.

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RUITENBERG, Bert. O erro e a Aviação
MOREL, Christian. Erros radicais e decisões absurdas: uma reflexão sobre a estrutura das decisões. Trad. Monica Baña Alvarez. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
[1] “O inconsciente existe também naqueles não doentes, mas nesses casos ele é muito menos visível e muito menos evidente. Em nossa opinião, a decisão absurda é o equivalente a um eclipse do sol. A situação excepcional do sol é uma oportunidade para observamos sua coroa, impossível de ser vista de qualquer outra forma.” (MOREL, 2003)
A construção de uma memória - O acidente do Vôo 1907

Maria da Conceição Pereira
Mestre em Psicologia Clínica, especialista em Fatores Humanos na Aviação.

Todo sofrimento será memória. Eu, [sentado aqui,serei só estes versos que dizem [haver um eusentado aqui.
Antonio Brasileiro De Pequenos Assombros (1998/2000)

Hoje resolvi escrever alguma coisa sobre o meu vivido diante do acidente do vôo 1907 acontecido na serra do Cachimbo, Região do Parque Indígena do Xingu.
Meu principal interesse quando escrevo, é que gostaria de deslocar os que me lêem para além de minhas próprias palavras. Escrever sempre me levou a possibilidade de alcançar um novo estágio de percepções que tenho daquilo que me cerca no mundo, e da própria situação em que me encontro no momento que escrevo.
Creio que devo começar a escrever do pós-acidente, pensando no momento anterior ao acidente. Gostaria de me situar e situá-los na dimensão do meu olhar (sempre míope) de como percebia naquele momento a aviação no Brasil.

A visão da Aviação Brasileira nesse momento...

Não é desconhecido que algumas empresas aeronáuticas no Brasil perderam-se na “teia do redemoinho” da própria crise econômica no setor aeronáutico do mundo. Paralelo a estas questões, o sistema aeronáutico brasileiro estava e esta passando, por mudanças de ordem político-administrativas que incluem uma perspectiva sociocultural e econômica, segundo os especialistas, de busca de abertura de mercado e ampliação no sentido de um pensar voltado para aviação civil, gerida e pensada por Civis. A implementação da Agencia Nacional de Aviação Civil (ANAC - criada em setembro de 2005 e instalada em março de 2006), como agencia civil estaria dimensionando, como outros grandes paises do mundo, uma perspectiva de uma aviação livre e democrática, já que até então, estava à aviação civil calcada em gerenciamentos, muitas vezes entendidos como extremamente padronizados e fechados de cunho militar, uma vez que era administrada por militares.
Sem querer fazer nenhuma leitura crítica de onde está a melhor perspectiva de gerenciamento de nossa aviação, penso que, um momento de transição implica em cuidados efetivos de se encontrar caminhos para aquilo que está funcionando bem não perca o rumo. E, a ANAC deveria procurar efetivar ações para pontos de referencias que precisam ser modificados para tornamo-nos melhor, diante daquilo que não funcionava dentro dos modos ideais.




O vôo 1907

Volto a vôo 1907, vôo da empresa que neste momento mais desenvolve ações de crescimento no Brasil no nosso negócio aeronáutico. Um vôo em uma aeronave que trazia uma das últimas gerações tecnológicas no seu cunho técnico material, gerenciado por uma tripulação treinada, preparada e rica de experiência profissional, um vôo de rotina, um vôo que, provavelmente, transcorria em seu dia a dia de normalidade. Um vôo que carregava alegrias, tristeza, sonhos e esperanças da vida de 154 pessoas.
E, aconteceu a fatalidade!
Não vou descrever o acidente na minha forma de enxergá-lo como profissional especialista em fatores humanos na aviação. Esta não é minha intenção aqui. Todos que me lêem, neste momento, já estão com suas idéias formadas e vivem um pré-texto efetivado pela forma como a mídia vem informando e explicando o acidente do vôo 1907, espero apenas, como já disse, anteriormente, “deslocar” um pouco este “pré-texto” já efetivado dentro de cada um.
Prefiro salientar minha preocupação de psicóloga que desenvolve sua prática na aviação, de que o caminhar das indústrias aeronáuticas e do próprio sistema aeronáutico como um todo, vive uma filosofia que fortalece e super estima a tecnologia diante das condições humanas e suas subjetividades, no meu entender. Neste acidente o sistema levou um xeque (do xadrez - jogo complexo), e, um xeque-mate!

O xeque-mate na Aviação Civil

Trago o jogo de xadrez como metáfora, por ser um jogo que muda suas ações a todos os momentos, e que os jogadores de forma muito complexa, precisam fazer uma leitura geral compondo pró-atividade e reatividade na perspectiva do seu caminhar no jogo, no fenômeno que emerge em cada jogada efetivada, entre as partes envolvidas, que muda a cada momento seu próprio caminhar no caminhar do jogo.
O que nos faz pensar: é preciso reiniciar um novo jogo de conhecimentos na prevenção dos acidentes aeronáuticos. E é preciso buscar outras rotas para nossos estudos técnico-científicos, que permita maior entrelaçamento na compreensão dos fatores humanos entre o tecnológico e o subjetivo humano, considerando, o subjetivo instalado na sociedade pós moderna.
Em nosso caminhar na aviação, com as implementações dos recursos técnicos e das diversas gerações do CRM e de outros dispositivos técnicos, que efetiva o gerenciamento do humano diante de sua atividade, trabalhamos, creio eu, ainda em conceitos teóricos sobre erros, violações e o próprio entendimento do Humano na aviação, com bases que, provavelmente, já se perderam neste caminhar infinito de mudanças do próprio homem diante do mundo que ele faz parte, cria e recria.
Creio que este acidente diante das configurações que se evidenciam no fenômeno vivido, e que vai se revelando nas investigações em todas as ordens, seja a técnica-operativa aeronáutica, seja no contexto da mídia, seja nas prerrogativas das demandas jurídicas que emergem de um mundo eminentemente econômico, é preciso procurar novos “lances” (no fenômeno de jogar com o conhecimento) de um saber mais compreensivo que explicativo. É preciso rever os conceitos sobre fatores humanos na aviação, e é preciso entender que os sistemas que componham a aviação vão além das instituições que a praticam; empresas aéreas fabricas de aviões, organizações reguladoras, organizações outras que se fazem presente em tal atividade. É preciso pensar, também, no contexto político ideológico do mundo que vivemos em suas composições objetivas e subjetivas, e é preciso chegar perto do possível inimaginado e até mesmo do “quântico dos encontros caóticos” que formulam dimensões favoráveis à vida e dimensões favoráveis a morte.
Feitas estas considerações, relato agora o que vivi no atendimento ao pos acidente como psicóloga cuidadora daqueles vitimados, parentes, pessoal operativo da empresa envolvida, e dos próprios cuidadores.

O Pós-acidente do vôo1907.

Vislumbrei que vivemos momentos distintos e fazemos, efetivamente, um caminhar e um movimento para cada momento que emerge do fenômeno pós-acidente.
Comecemos pela tomada de conhecimento do evento:
Tomei conhecimento do acidente dentro de um supermercado, quando fui acionada pelo chefe de operações do serviço de atendimento da aviação civil do aeroporto de Recife.
Assim se dar à dor, em momentos singelos do viver. Dos impactos vividos:
O desaparecimento do vôo 1907 - GOL, a evidencia de choque no ar (acidente de tráfego aéreo). A configuração de um desastre de massa dentro do nosso sistema aeronáutico, em um momento de transição efetiva entre os órgãos competentes responsáveis pela aviação no Brasil. A rota e local previsto onde se efetivou o desaparecimento do vôo 1907 (rota de cruzeiro, sobre a região Amazonas). A possibilidade técnica de não existir sobreviventes, caso o avião tivesse caído rumo a terra, sem rumo e sem prumo. Como? Pergunto eu.
Saindo do contexto impactante da noticia era preciso tomar algumas providencias segundo a nossa lei de assistência à família IAC-200-1001/2005, e já no aeroporto passamos a receber os familiares e amigos ávidos de notícias e cheios de esperanças de que não fosse verdade.
Para ser mais prática em meu relato vou tentar trazer o que aprendi nesta experiência e que quero fazer valer junto a outros profissionais.
Este acidente em relação ao pós-acidente nos ensinou que treinar é preciso, capacitar pessoas no atendimento é fundamental e que, mesmo treinados, enfrentaremos a situação de forma singular e única. Sempre!
Tornou-me mais claro, que a dor congrega... Congregou os familiares e amigos das vítimas, daí a dificuldade inicial dos órgãos competentes de tomarem as medidas devidas e facilitadoras para encontrar a aeronave, chegar ao local, encontrar ou não sobreviventes, demorou apenas, o suficiente em que as famílias se reuniram e fizessem do seu grito de dor a bandeira de sua luta. E isto foi impulsionador para que os dirigentes das instituições envolvidas saíssem de seus pedestais onipotentes a correrem atrás do prejuízo de não estarem preparados de forma mais clara e objetiva no pensar cooperativo num momento como esse. Necessário é sair das vaidades corporativas e caminhar unidos.

Vivência no atendimento no luto

Este acidente trouxe a possibilidade de que a vivencia da dor se deu num primeiro momento na da perplexidade (aconteceu um acidente, alguém que amo pode está lá). A da dúvida com esperança, na confirmação da lista de passageiro (alguém que amo está lá, ainda vive?). A da dor da realidade com restinho de esperanças, na condição da afirmação técnica: não há sobreviventes (alguém que amo pode ter morrido, mas ainda não foi encontrado). A dor da certeza da realidade, e fim da esperança (alguém que amo foi encontrado morto e identificado).
O movimento psicológico de este caminhar é extremamente desgastante para as pessoas envolvidas, para os familiares e para os profissionais que estavam acolhendo o processo do atendimento. O movimento é de alojar a dor num dado momento, e sentir que foi desalojada num outro; e em outro momento diante de novas notícias que surge, para alojá-lo novamente. Isto é cíclico. Até fechar o circulo no concreto do enterro de seus mortos. A partir de então, será outro movimento.
No mundo aeronáutico negar a morte é componente organizador para o vôo, assim, nos perguntávamos todo tempo, como lidar com a morte como resultado de um vôo? A morte em massa, não mais a morte pontual de acidentes pequeno que em nossa prática profissional já tínhamos experimentado e acompanhado.
A perspectiva do atendimento no pós-acidente é trabalhar o luto na emergência, e trabalhar o luto não é abafar a dor, é principalmente deixá-la emergir para poder sair dela, inteiro, e entender que para os que ficam, a vida não pára. Freud já dizia:
“A dor que não é compreendida inevitavelmente reaparece, como um espírito andante que não pode descansar até que o mistério seja esclarecido e o encanto quebrado.” FREUD - OBRAS COMPLETAS, 1909.
Disse a professora Maria Helena Pereira Franco, grande especialista brasileira no assunto, e coordenadora do grupo de trabalho do atendimento pós-acidente do vôo 1907:

“A pessoa enlutada em condições traumáticas está fragilizada e precisa de acolhimento. O que norteia nossa prática é o cuidado para não fazer com que a pessoa pare de sofrer rapidamente, pois isso seria um mecanismo de obstrução de sua reação, com conseqüências graves. Tomamos cuidado para não evitar o assunto”, FRANCO, M. H. P. (agencia FAPESP-2006).

E o cuidado com os profissionais de atendimento?

É preciso compreender que não só os parentes, mas os profissionais de companhias aéreas, grupos de salvamento, profissionais de saúde, funcionários das instituições envolvidas, os controladores de tráfego aéreo e os pilotos que estiveram envolvidos diretamente neste acidente, jornalistas e outros envolvidos, podem precisar de atendimento.
Posso falar por mim, e tudo que venho sentindo nestes últimos dias me faz identificar que sintomas normais, advindo da situação anormal, me chegam, em momentos que sinto meu sono perturbado, falta de apetite, certa labilidade afetiva (choro com facilidade), assim , a equipe de atendimento deve está sempre se trabalhando, buscando apoio um no outro e se permitindo sair por alguns momentos do contexto onde o grupo de familiares, funcionários e outros são atendidos, para oxigenar sua condição psicológica, e retomar aos atendimentos com condição de ser produtivo o suficiente e oferecer seus cuidados.



E o atendimento pós-acidente do vôo 1907 se fe...

No caso do desastre do vôo 1907, a maior parte dos atendimentos foi realizada em quatro hotéis de Brasília, disponibilizados pela empresa aérea, onde alojou parentes das vítimas. Cerca de 300 pessoas esperaram o reconhecimento dos corpos na Capital Federal. Em alguns casos, os parentes não puderam viajar, inclusive por motivo de saúde, entre outros motivos. Por isso a equipe de trabalho se espalhou pelo Brasil nos estados onde estavam presentes pessoas familiares de vítimas, cerca de oito estados brasileiros.
Feito este atendimento e enterrados seus mortos, agora é preciso acompanhar a forma como estas pessoas mais próximas das vitimas vão seguir suas vidas com a possibilidade do compromisso regulamentar junto à empresa aérea, de apoiá-los com atendimento médico e psicológico no mínimo de um ano.

Considerações para meditação

Não entrarei em outros detalhes que observei nesta experiência que envolve a questão da ordem da permanência da mídia e da especulação judicial das “recompensas” dos seguros previstos. Não quero ser especulativa no meu posicionamento pessoal, mas todo me pareceu neste âmbito, muito triste e doloroso. Não sentia a importância da vida ou do valor do outro como ser de existência, aquele que passa e nos deixa algo que nem a morte tira.
O que observei, infelizmente, foi que aquele que se vai, se tornou produto de especulação pecuniária em função dos “produtos de venda” que emergem da situação de um desastre no mundo de hoje, dimensionado e regido pela economia, assim, advogados, profissionais do seguro, psicólogos, médicos, jornalistas, agentes funerários, entre outros, mal os corpos estavam sendo identificados, já estavam buscando encontrar caminhos onde o dinheiro falava e mandava.
Voltando a pensar no acidente e no como ele aconteceu, situação que ainda não existe resposta, digo que espero que a mídia, assim como soube ser sensacionalista, mas também, impulsionou muitas ações que ajudaram no processo da busca e reconhecimentos das vítimas, como também o setor jurídico diante de seus interesses, impulsionem os processos investigativos do acidente para a elucidação que ajude a compreensão de que um acidente não ocorre de uma causa específica. Espero que estes demais seguimentos vistos tão nocivos até então, por ser muito especulativo e detentor de um poder de punição, ajudem para que os órgãos responsáveis pela regulamentação na aviação e a prevenção de acidentes possam ser mais cautelosos em suas decisões, e apreendam de verdade com este acidente. Que a tensão gerada entre saber aeronáutico, saber jurídico e saber jornalístico possam ser produtivos e congregador em busca da prevenção. Este acidente trouxe na dor, o muito que diante da prática temos que procurar aprender a desenvolver seguindo o caminho da vida nos seguimentos aeronáuticos.

“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma. Até quando o corpo pede um pouco mais de almaA vida não para”.
(Lenine e Zeca Baleeiro)