Por Concita Maria da
Conceição Correia Pereira
1. Cenários de Emergências: Desafios do Cuidado em Tempos Críticos
Refletir sobre a
psicologia em tempos de emergências nos remete, antes de tudo, ao cuidado com
quem cuida. Em contextos marcados por situações críticas, essa perspectiva
torna-se um imperativo ético e humano.
O primeiro ponto que
queremos destacar nesta fala diz respeito à crescente visibilidade dos
desastres que, infelizmente, têm atingido com frequência diversas regiões do
planeta. Dentre eles, destacam-se os desastres socioambientais, intensificados
pelas mudanças climáticas ainda negadas
por muitos, mas evidentes em tragédias como a vivida no estado do Rio Grande do
Sul. Essa experiência dolorosa, que ainda não se encerrou, escancarou a
gravidade dos impactos ambientais e sociais que atingem comunidades inteiras.
Mas não estamos falando
apenas de desastres ambientais . As tragédias tecnológicas, como o crime
socioambiental de Brumadinho causado pela mineradora Vale, também revelam as
engrenagens de um sistema neoliberal que prioriza o lucro acima da vida. Em
todos esses contextos, é imprescindível voltar o olhar para os profissionais
que estão na linha de frente: aqueles que acolhem, resgatam, atendem e, também
sofrem profundamente.
Precisamos pensar
nesses sujeitos não apenas como técnicos, mas como pessoas atravessadas pela
dor dos outros e também pelas suas
próprias dores. O sofrimento do outro nos convoca a reconhecer o nosso próprio,
e só o cuidado consigo mesmo pode impedir que essa dor se transforme em
adoecimento psíquico, físico e social.
2. O Desafio do Autocuidado: Cuidar-se Para Cuidar
O segundo ponto que nos
desafia é a prática do autocuidado. Muitas vezes, essa dimensão é
negligenciada, como se fosse algo secundário ou uma concessão, quando deveria
ser compreendido como um direito e uma necessidade ética. No entanto, reconhecer
nossas vulnerabilidades físicas,
emocionais e psíquicas é fundamental para prevenir o sofrimento e mitigar seus
efeitos.
Costumo afirmar que um
dos pilares para lidar com o sofrimento daqueles que cuidam é uma formação
sólida, aliada à consciência de suas competências e habilidades pessoais e
profissionais. Quem tem clareza sobre seu saber técnico está mais preparado
para agir com segurança em contextos críticos. Essa consciência favorece a
tomada de decisões e a operacionalização de ações eficazes, mesmo diante da
incerteza dos cenários que se transformam rapidamente.
Dou um exemplo real: em
uma situação de desabamento, fui chamada para resgatar uma senhora que havia
perdido quatro familiares soterrados. Ela se recusava a sair do local, tomada
pela dor e pelo desespero. A intervenção imprimia ser rápida, empática e
precisa. Usei palavras que a ajudassem a se reconectar com sua própria
sobrevivência. Reconecta-la a sua condição de vida e de existência no contexto
da sua família e da sua capacidade de resiliencia emocional, não foi fácil,
realizamos algo que Baubert,2010 chama de oxigenação psíquica e convencê-la a sair foi um ato de mitigação
de sofrimento e de prevenção de um possível trauma maior. Conseguimos retirá-la
sem o uso da força algo que, caso necessário, faríamos por sua própria
segurança. Essa experiência reafirma o quanto a formação e a habilidade em
negociação, comunicação e escuta ativa são
fundamentais em tais momentos .
Além disso, é essencial
compreender que não estamos sozinhos. Muitos profissionais atuam em rede, e
devemos evitar o peso da onipotência aquela crença de que precisamos dar conta de
tudo sozinhos. Isso só aprofunda uma fadiga silenciosa, uma fadiga que tenho o
costume de chamar fadiga existencial que defini em minha dissertação de
mestrado como um estado profundo de esgotamento emocional, mental e espiritual
que vai além do cansaço físico ou da exaustão típica do trabalho. Ela se
caracteriza por um sentimento persistente de vazio, falta de sentido, desalento
diante da vida e desconexão com o propósito pessoal ou coletivo. e muitas vezes
não reconhecida: a fadiga existencial, marcada por um cansaço que antecede até
mesmo o início da jornada de trabalho.A Fadiga existencial é o esgotamento que
resulta não apenas do excesso de fazer, mas da ausência de sentido no que se
faz.Em uma trabalho de cuidar de pessoas em vulnerabilidades , solicita a nossa
compreensão de compartilhar e absorver saberes , conhecimentos advindos de outros
profissionais que estão atuando no mesmo âmbito de tais situações e devemos cuidar
da partilha, construir coletivos de apoio e fortalecer as redes são caminhos
possíveis para diluir essa sobrecarga. Nenhum cuidado pode ser feito
isoladamente. O “nós” precisa estar acima do “eu” quando se trata de preservar
a saúde mental de quem cuida.
3. Escutar os Sinais do Corpo e da Alma
Cuidar de si para
cuidar do outro exige escuta atenta aos nossos próprios sinais de alerta:
dificuldades para dormir, insônia persistente, angústia diária, tristeza
prolongada, uso contínuo de medicamentos
mesmo os mais simples e,
sobretudo, a presença sutil de ideações suicidas, que podem se expressar em
formas veladas, como a negligência com o próprio bem-estar.
Por isso, recomendo um
acompanhamento psicológico contínuo para profissionais que atuam diretamente
com o sofrimento humano. Psicólogos e assistentes sociais, por exemplo, tendem
a buscar mais esse tipo de apoio. Já médicos, enfermeiros, bombeiros, policiais
e outros trabalhadores de ponta, por vezes presos em posturas de negação ou de onipotência,
resistem mais a procurar ajuda.
Reforço aqui a
necessidade de que instituições e organizações criem programas específicos
voltados ao cuidado com o cuidador, considerando os fatores humanos envolvidos.
Cuidar de quem cuida não pode ser apenas um discurso: precisa ser uma política
institucional.
O Cuidado de Quem Cuida é uma Urgência Coletiva
Cuidar de quem cuida
não é um favor, nem um gesto de boa vontade é uma urgência ética, política e
institucional. Não se trata apenas de garantir que profissionais estejam “bem”
para continuar produzindo, mas de reconhecer que são seres humanos atravessados
pelas dores que enfrentam, pelas perdas que testemunham, pelas impossibilidades
diante daquilo que não podem evitar.
O sofrimento psíquico
de quem atua em situações de emergência, catástrofes, desigualdades e abandono
institucional não pode mais ser romantizado nem invisibilizado. A exaustão
desses profissionais não é fraqueza é
sinal de que algo no sistema precisa mudar.
O cuidado com quem
cuida deve ser compreendido como parte da
resposta social aos desastres, à dor e à reconstrução da vida. Não é
algo adicional, é estruturante. É condição de permanência com dignidade. É
também resistência.
Sem políticas de
acolhimento, espaços de escuta, suporte técnico e emocional, e sem o
fortalecimento das redes de apoio e solidariedade, continuaremos adoecendo
aqueles que mais sustentam a vida nos momentos mais difíceis.
Que possamos seguir
lembrando: ninguém cuida de ninguém com
potência quando está esgotado, solitário ou sem sentido. O cuidado começa
dentro e precisa se expandir para o coletivo.
Esse é o nosso compromisso: não apenas cuidar do outro, mas construir um mundo em que também possamos ser cuidados.
Quero concluir com um pensamento de Freud que ressoa profundamente com o tema que nos une hoje. Em um de seus textos, ele afirma: