AUTOMAÇÃO / O DESEJO E PRAZER EM VOAR

Este foi meu primeiro texto publicado com o tema da Aviação, na revista SIPAER-Brasil em 1999


AUTOMAÇÃO / O DESEJO E PRAZER DE VOAR

Maria da Conceição P. Sougey — Psicóloga .
Cmte. Carlos Batista Gonzalez — Cmte. e Psicólogo

Com o avanço histórico do tecnocentrismo, os instrumentos criados pelos homens tem se expandido e ocupado cada vez mais espaços que eram antes preenchidos por ele, transferindo às maquinas funções que até então eram executadas e vivenciadas pelo próprio inventor.
Nossa época tem sido marcada por uma nova relação entre homens e máquinas, onde um novo tipo de utopia, a "Tecnologia", tem conseguido efeitos tão diversificados que parecem alterar a forma como os primeiros se percebem no mundo, trazendo uma nova realidade, ainda não completamente compreendida por ele.
Focalizando a atividade aeronáutica através do seu processo de avanço tecnológico, observa-se que o homem que executava a ação de levar ao céu as máquinas voadoras, perdem a cada dia a importância de seu papel enquanto agente ativo e principal do ato de voar.
Automatizar tem significado cortar custos, baratear equipamentos e mão de obra, viabilizar aquisições, aumentar frotas e consequentemente os negócios (capital), quer dizer, atender as demandas de um paradigma que se baseia essencialmente na economia, o que inexoravelmente tem exigido novas relações trabalhistas e sociais.
Por outro lado, tudo isso tem implicado em perda gradual do controle do homem, o piloto, sobre o evento maior que o construiu, o vôo.
A intensa automação que se verifica atualmente nas cabinas de comando, tem transferido para as máquinas grande parte das tarefas antes atribuídas ao piloto, que outrora "fazia o avião voar".
Hoje, pousos completamente automáticos e equipamentos que impedem ao piloto realizar qualquer manobra que seja julgada inadequada às fases do vôo, são uma realidade. A sensibilidade artificial eletrônica (artificial feeling) com a qual os modernos pilotos automáticos são dotados, permitem manobras tão precisas, suaves e econômicas quanto só um piloto bem treinado e experiente é capaz.
O contexto tecnológico modernamente oferecido ao piloto, praticamente banaliza sua presença a bordo, relegando-o ao mero posto de gerenciador de sistemas, e a esta banalização segue-se uma subvaloração daquele personagem, o piloto, que passa a buscar uma nova relação com a máquina, exigindo dele a adaptação ou a constituição de uma nova identidade.
Compreender a relação do homem com a atividade aérea, exige uma incursão ao entendimento do seu desejo e prazer de voar.
O homem, ser essencialmente terrestre, desenvolveu-se originalmente limitando a maior parte de seus deslocamentos em contato com a concretude da superfície do planeta. Não estando, portanto, naturalmente biológica ou psicologicamente adaptado para deixar aquele ambiente. Tem conservado, porém aquele homem, em seu inconsciente o produto da imaginação e do desejo de seus ancestrais, de "elevar-se aos céus".
A mitologia, como recurso primordial para a realização de ações humanamente improváveis ou naturalmente impossíveis, lançou mão de figuras como Dédalo e seu filho Ícaro, para materializar a possibilidade de o homem (uma vez que aqueles personagens eram também humanos), elevar-se acima da superfície dura, concreta e real da terra, rumo ao desconhecido, ao distanciamento, num ambiente até então reservado aos verdadeiros deuses. "E eles voaram".
Ocorre que a realização deste desejo de voar exige a utilização de um recurso artificial, o avião, que devidamente mimetizado, quer dizer, integrado ou assimilado ao corpo do aviador, permite à ele concretizar seu intento.
Voar então é produto do desejo inconsciente do homem de realizar o naturalmente irrealizável, transpondo os próprios limites (ultrapassar velocidades, sustentar-se sobre a terra, dominar os ventos, driblar as tempestades) o que faz com que esse homem "alado" sinta-se "potente e poderoso".
Voar, então se justifica naquele sentimento de poder, permitindo que o homem se arrisque na transgressão (das leis naturais), transcendendo sua condição humana, aproximando-o dos deuses primordiais.
Ninguém se torna piloto por acaso. Segundo Rodolfo Bohoslaviski (1971), "de alguma forma o vínculo com qualquer atividade tem algo de reparatório para o indivíduo, onde a atividade escolhida será o depositário externo do objeto interno que clama por ser reparado, dimensiona o comportamento das ocupações, incluindo o processo de escolha, na singularidade do sujeito e enfatizando o trabalho de construção social cristalizado nas ocupações. Assim fica estabelecida uma relação dialética entre o homem e sua atividade".
A motivação específica da atividade aérea vem do "prazer de voar", "do gosto de voar", da possibilidade de evadir-se. O homem transpõe seus limites. "Solo el placer es capaz de transcender sobre el miedo inherente al peligro" (Diero Miisenard, citado por Hernero Aldoma, 1978, pg.28)
Na atividade aérea ao mesmo tempo em que comporta uma significação narcísica, ela também suporta investimentos simbólicos.
"Uma atividade pelo gesto que ela implica, pelos instrumentos que movimenta, pelos materiais tratados, pela atmosfera, veicula um certo número de símbolos. A natureza e o encadeamento desses símbolos dependem ao mesmo tempo da vida interior do sujeito isto é, do que ele põe, do que ele introduz de sentido simbólico no que o rodeia e no que ele faz" (Dejour, 1987, pg.50).
Envolvido na atividade de voar além de realizar o objeto interno, o homem realiza o sonho do impossível, do inimaginável ao homem da Grécia antiga. É como que se mimetizando aquela grande massa de metal e outros tantos materiais sintéticos e componentes, dando vida às máquinas de voar, ele,homem se torna um pouco dela, emprestando-lhe a "potência" e a capacidade de lançar-se aos ventos, rumo ao desconhecido, ao não térreo, à morada dos deuses, como fizeram Dédalo e Ícaro.
Os pilotos de hoje, juntos de suas máquinas voadoras parecem ter perdido contato com a essência do vôo e de seus elementos simbólicos. O que lhes tem sido modernamente oferecido como possibilidade de realizar seu desejo de voar, transforma-se, e transforma-o.
As mudanças, não só tecnológicas mas todas as demais envolvidas na dimensão humana como resultado de um processo histórico, tem ocorrido numa velocidade maior que a capacidade de mudança interna do homem. Vive-se um momento epistemológico, uma crise de sentido do "fazer voar", pela não plena realização do desejo de voar.
No campo surgido da ruptura provocada então pela crise de sentido, pode se localizar componentes (elos) significativos da corrente que simbolicamente representa o encadeamento de fatores que culminam em um incidente/acidente aeronáutico, que parece materializar um desprazer prévio, que impede o piloto de mobilizar o melhor de si na tentativa de vencer as inexoráveis forças da natureza.
Neste novo tempo, fatores limitadores tem impedido a aparente e adequada simbiose homem-máquina. Fatores estes como: as rígidas regras, o próprio processo de automação, as relações organizacionais e os novos paradigmas do trabalho, entre outros, tem afastado cada vez mais os pilotos de suas "asas", tornando-o apenas um componente a mais daquela que antes era parte de seu corpo, a que lhe permitia se sentir um ser diferenciado.
Agora ele é parte de um complexo sistema operacional, um gerenciador desse sistema e nada mais. Esse novo processo de relação com seu instrumento/objeto de realização do seu desejo e prazer (o avião agora automatizado), reduz o seu “poder”, isso parece interferir diretamente em sua auto-estima, rebaixando-a de tal forma que se sentindo abandonado à própria sorte, mal consegue mobilizar recursos internos ou externos em prol da manutenção de suas conquistas prévias.
Hoje parece sintomático na aviação, viver-se uma crise de sentido, que coloca o piloto diante das possibilidades e necessidades de desempenhar tarefas que nem sempre lhe proporcionam o desejado ou esperado prazer, que partindo da referência das demandas internas, sugere um novo processo de adaptação, uma ressignificação da atividade de voar, porque não uma nova identidade na tentativa de encontrar um novo sentido para o cenário que lhe é oferecido para voar, uma vez que o automatismo se revela irreversível.
Bibliografia consultada:

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Vol I. Petrópolis. Ed. Vozes, 1994.
BLEGER, José. Psico-higiene e psicologia institucional. Porto Alegre Ed. Artes Médicas, 1988.
BOHOLAVSKY, Rodolfo. Orientação Vocacional à estratégia clínica. São Paulo; Ed. Martins Fontes. 1977.
DEJOURS, C. A loucura do trabalho; estudo de psicologia do trabalho . São Paulo Ed. Cortez-Oboré, 1987.
FREUD S. Três ensayos para uma teoria sexual (obras completas V.II). Madri; Ed. Biblioteca Neuva. 1981.
FILHO, Marcondes Ciro. Sociedade Tecnológica. São Paulo; Ed. Sipione. 1994.
KLEIN, Melaine. A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego – contribuições à psicanálise. São Paulo; Ed. Mestre Jou. 1981.
PATT, Hugo Leimann. Síndrome de desadaptacion secundaria al violo sociedade interamericana de psicologia aeronáutica. Buenos Aires. 1989.

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