A Investigação do acidente aeronáutico: Uma intervenção Fenomenológica




Maria da Conceição Pereira Sougey [1]
Apresentação
O objetivo desse estudo, com bases metodológicas na Fenomenologia Existencial, é apresentar a investigação do acidente aeronáutico sob a luz de um processo interventivo fenomenológico, entendendo o acidente como um fenômeno sistêmico e complexo. Procurando, não só a explicação dos processos desencadeadores, mas, a compreensão dos fatos desencadeantes do acidente, considerando o significado e o sentido desses fatos/fenômenos.
Junto a esse objetivo, queremos também, construtivamente, pensar a forma como se realiza a investigação dos acidentes até o momento. O cenário da aviação mudou e as tecnologias avançaram. Assim, os conceitos voltados aos Fatores Humanos foram se modificando. E o processo de investigação dos acidentes tem permanecido sem alterações substanciais em suas metodologias formais, que acompanhem essas modificações no sistema aeronáutico. Aqui nos reportamos à experiência no Brasil.
As idéias aqui apresentadas partem dos pressupostos fenomenológicos existenciais, diante de correntes psicológicas advindas da compreensão holística dos fatos, com apoio da psicossociologia, da abordagem sociotécnica e do pensamento complexo de Edgar Morin.
Procurar o entendimento de que cada acidente é uma experiência individual e coletiva ao mesmo tempo. Onde a resposta para sua compreensão se daria também no como aconteceu. E não somente no porque aconteceu,. considerando-se que não devíamos perguntar simploriamente: “quem falhou?” Ou, “quem é o culpado?”
A perspectiva de análise fenomenológica não considera o investigador neutro. Assim, pensa-se que o processo investigativo é também interventivo, e imediatamente transformador ou mantedor do status existente. Na intervenção fenomenológica, busca-se desvelar fatos que, mesmo observados, parecem não existir, mas que estão atuando de forma direta no fenômeno expresso na ocorrência do acidente.
Espera-se, com esta metodologia de ação, que as investigações de acidentes possam indicar o lugar que cada acidente ocupa no espaço da comunidade onde o evento aconteceu. Pretende-se, no processo investigativo, re-significar os fatos experimentados e, assim, oferecer uma nova possibilidade, uma nova maneira de pensar o que foi vivido e que culminou no acidente.
Paralelo a esses propósitos, este estudo quer também apresentar uma investigação como meio de prevenção para os acidentes aeronáuticos, entendendo que a mesma não se encerra no fechamento de um relatório.
Sendo instrumento e veiculo de prevenção, seus resultados devem compor os elementos que fomentam as transformações: mudanças necessárias e sistemáticas que devem ocorrer no sistema aeronáutico como um todo.
Pressupostos e Considerações Teóricas
A condição básica proposta por uma investigação de um acidente ou incidente, está na ordem direta de prevenir futuras ocorrências. Visa, ou deveria visar, antes de qualquer coisa, ações para a Segurança Operacional.
Para a compreensão da proposta deste estudo, se faz necessário apresentar um pouco da experiência que vem sendo desenvolvida no Brasil, em seu método de ação nas investigações realizadas até então.
A metodologia implementada parte de uma expectativa de levantar fatores, chamados de fatores contribuintes, focalizados através da idéia de que estes fatores compõem grupos: hoje, os grupos dos Fatores Materiais e dos Fatores Humanos. Nos Fatores Humanos, incluem-se os aspectos operacionais, os aspectos psicológicos e os aspectos médicos.
A normativa de base é a NSCA3-6 revisada em 2008, que em seu bojo de norteamento segue também as orientações advindas do anexo 13 da ICAO, e o Manual de Investigação organizado e proposto pelo CENIPA em 2009 que vem sendo aprimorado.
A dimensão metodológica no Brasil se dá na formação de uma comissão de investigação composta de:
a) Presidente - Oficial Superior do Comando da Aeronáutica, responsável pela investigação como um todo, representando o CI;
b) Coordenador - Profissional qualificado pelo SIPAER como OSV ou ASV, responsável pela coordenação das tarefas de investigação e desempenhando a função de Investigador-Encarregado;
c) Fator Material - Profissional qualificado pelo SIPAER, conforme NSCA 3-2, responsável pela investigação deste Fator;
d) Fator Humano-Aspecto Operacional - Profissional qualificado pelo SIPAER, conforme NSCA 3-2, responsável pela investigação deste Fator, preferencialmente com experiência na aeronave envolvida;
e) Fator Humano-Aspecto Médico – Médico qualificado pelo SIPAER, conforme NSCA 3-2, responsável pela investigação deste aspecto; e
f) Fator Humano-Aspecto Psicológico – Psicólogo qualificado pelo SIPAER, conforme NSCA 3-2, responsável pela investigação deste aspecto.
O presidente da comissão pode convocar outros profissionais que considere de importância e que ajude a compor os fatos acontecidos.
Victor Cardoso (2004), em sua dissertação de mestrado dentro de uma abordagem sociotécnica, considera que a maneira “fatorada e de multicausalidade” em que se processa a investigação de um acidente aeronáutico, pode distanciar da condição preventiva que se espera de um processo investigativo, uma vez que limita seu alcance no sentido mais amplo.
Entende-se também que, na investigação que ainda hoje se realiza no Brasil, privilegiam-se as partes, de acordo com o conhecimento específico de cada investigador e ainda se levantam fatos de forma separada da condição do acidente, ou desvinculadas dos contextos mais subjetivos dos sistemas envolvidos. Essa condução nem sempre vai favorecer a compreensão do todo.
Existe ainda uma tendência a pensar o humano e o técnico de formas isoladas, e precisamos avançar na idéia que o humano e o técnico são inseparáveis. Além do que, na realização de uma atividade, existe um sentido e uma representação social: no indivíduo que a realiza e naquilo que a atividade realizada oferece de sentido diante da sociedade.
Pensando como Arendt (2000), é a partir do seu trabalho que o homem diante do mundo “produz objetos” que duram além da sua própria vida. A existência de um espaço público durável depende dos resultados da atividade do trabalho. “Sendo voltada para a permanência do mundo”, a condição humana do trabalho é a mundanidade.
No seguimento reflexivo, trazemos a idéia de que, em todas as atividades, vamos encontrar uma característica designada por uma condição humana. Esta se junta, no nosso entender, a uma dimensão de ordem social, que se configura em instâncias entrelaçadas, ou emaranhadas, do coletivo que abriga a atividade.
Estes são os fatores intervenientes que possibilitam a construção social de qualquer estrutura de trabalho e de qualquer sistema de ação/atividade.
É desta forma que compreendemos as organizações e o como se configura o agir coletivo
No âmbito da experiência de analisar o Fator Humano no aspecto psicológico de acidentes aeronáuticos, observa-se que existe distância social entre o investigador e o que é investigado. Com isso, fomenta-se o foco nas partes, deixando despercebida a compreensão do todo, na medida em que as perguntas básicas na investigação, por mais que se afirme o contrário, ainda tem sido: “Porque aconteceu e quem é o culpado?”
Desta maneira, se realiza uma decomposição do fenômeno procurando a explicação e não a compreensão do mesmo. E, na premissa de neutralidade do investigador, perde-se a noção de que nenhuma experiência humana se faz sem interações.
O cientista alemão Maximilian Sandor (2005) afirma que o estudo de um conjunto como um inteiro, um “Sistema”, é tão ou mais importante que o estudo das suas partes em si mesmas. Esta abordagem, chamada de pensamento sistêmico ou holístico, hoje parece lógica. Mas o pensamento cartesiano e mecanicista está tão encravado na mente coletiva da humanidade, que poucos são aqueles que realmente ousam abandonar esse ponto de vista. E fazer a idéia do holístico atuar nas práticas desenvolvidas em todo sistema investigativo de qualquer acidente.
Percebe-se que a ciência, na sua expressão, se fecha em conceitos, e torna-se cada vez mais compartimentada, particularizada e fragmentada.
Falta também buscar-se a compreensão de que nenhuma corrente de pensamento se exclui. A polaridade poderia ser entendida como complementar e não como excludente.
Edgar Morin (2002), grande filósofo e educador contemporâneo, em seu pensamento complexo ajudaria muito bem a procurar uma forma de investigar um acidente aeronáutico partindo de suas proposições de que:
O problema do conhecimento é um desafio porque só podemos conhecer, como dizia Pascal, as partes se conhecermos o todo em que se situam, e só podemos conhecer o todo se conhecermos as partes que o compõem. Ora, hoje vivemos uma época de mundialização, todos os nossos grandes problemas deixaram de ser particulares para se tornar mundiais. Todos os problemas se situam em um nível global e, por isso, devemos mobilizar a nossa atitude não só para nos contextualizar, mas ainda para nos mundializar, para nos globalizar. Devemos, em seguida, partir do global para o particular e do particular para o global, que é o sentido da frase de Pascal: "Não posso conhecer o todo se não conhecer particularmente as partes, e não posso conhecer as partes se não conhecer o todo".
Assim, acreditamos que, num processo investigativo de um acidente aeronáutico, existe um entrelaçamento tão forte e complexo naquilo que estamos atuando, os chamados Fatores, que na excessiva análise das condição em partes, perdemos a visão do todo.
È necessário rever estes conceitos, que carregamos como fontes e bases teóricas, diante de uma investigação de um acidente aeronáutico ou de qualquer acidente em qualquer indústria.
Voltando a Edgar Morin, ele traz a reflexão de que:
Vivemos numa realidade multidimensional, simultaneamente econômica, psicológica, mitológica, sociológica, mas estudamos estas dimensões separadamente, e não umas em relação com as outras. O princípio de separação torna-nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto, mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto”.Complexus significa o que foi tecido junto” (MORIN, 2002 b, p. 38).
Parece que, por mais que caminhemos diante da idéia da visão sistêmica ou holística em uma investigação de um acidente aeronáutico, o que temos ainda vivido na prática, e o que nas análises finais mostramos, são a soma das partes.
No final das contas, trazemos apenas uma idéia explicativa, que propõe medidas de recomendações, mas não atravessa a possibilidade das constantes reincidências. E, infelizmente, não tem promovido efetivamente a reflexão do cotidiano e do questionamento nas instâncias e entranhas do sistema, o que permitiria as transformações sociais que poderiam possibilitar a prevenção de novos acidentes nas suas reedições.
Podemos verificar este fato se nos situarmos em reportes e especificações de situações que podem revelar possibilidades de erro. Perceberemos que, nos palcos de nossas organizações aeronáuticas, não dispomos de uma cultura que alimente o sistema de informação sobre erros e sobre o que estamos fazendo com eles. Temos ainda, nas organizações, baixíssimos níveis de reportes e de dados de controle baseados em experiências reais. Não nos detemos, efetivamente, na análise de fenômenos expressos nos comportamentos dos operadores na rotina de trabalho, de forma a encontrar caminhos de gerenciamento efetivo dos erros, com o objetivo de contê-los ou reduzi-los, ou, ainda, de promover medidas destinadas a limitar suas conseqüências adversas, uma vez que continuarão a ocorrer.
Isso nos faz concordar com a professora Lucia Filgueiras (USP), que disse: “as análises de acidentes não incluem a perspectiva das condições em que os erros foram revistos e recuperados”.
Quando nas entrevistas com os envolvidos em geral como, por exemplo, os pilotos, parecem que estão sempre dizendo coisas semelhantes, queixas semelhantes, desejos semelhantes e vivendo situações semelhantes.
E estes continuam expressando comportamentos semelhantes, mesmo que digam não concordar com ações inseguras no seu dia-a-dia.
Parecem apenas querer convencer a si mesmos. E todos se comportam buscando a segurança do vôo. Mas, no “tecido” experimentado, e no resultado das investigações nos acidentes vividos, consegue-se evidenciar algo que nem sempre queremos enxergar. Ou seja: que a segurança experimentada nas operações de um vôo se dá fragmentada e esfacelada na sua essência.
Buscar a compreensão do evento: assim se dá uma investigação nas bases fenomenológicas. A palavra compreender vem do latim, compreendere, que quer dizer: colocar junto todos os elementos de explicação. Ou seja, não ter somente elementos de explicação nas partes, mas a busca da compreensão do todo que envolve as partes.
Morin (1991), também diz:
”Mas a compreensão humana vai além disso, porque, na realidade, ela comporta uma parte de empatia e identificação. O que faz com que se compreenda alguém que chora, por exemplo, não é analisar as lágrimas no microscópio, mas saber o significado da dor, da emoção”.
Identificar erros operacionais do piloto, falhas de motores ou do controle de tráfego aéreo, em si não traz respostas conclusivas para todo o contexto daquilo que foi “tecido” e que levou ao acidente.
Considerando que avançamos no entendimento dos Fatores Humanos, da própria concepção do erro humano, é preciso ir além dos fatos, e focar o fenômeno na forma como ele se manifestou. A compreensão do fenômeno será dada no contexto onde os significados vão se articular com os fatos.
A vida humana se dá numa dimensão de complexidade, visibilidade e invisibilidade, pluralidade, transversalidade, multidimensionalidade, sincronicidade. Dentro de um macro e de um micro, em instâncias de um mundo econômico, político, ideológico e sociopsicológico. E dentro de uma rede de fenômenos articulada ou “tecida”, onde todos eles possuem o dinamismo apropriado que os torna capazes de afetar-se mutuamente.
Será que conseguimos nos aproximar, dentro do atual processo de investigação de um acidente aeronáutico, da compreensão mais próxima do fenômeno?
Investigar, numa intervenção fenomenológica.
Se pensarmos na fenomenologia como uma perspectiva teórica e metodológica, que tem o propósito de descrever fenômenos particulares tal como se manifestam e se revelam, podemos concluir que o método fenomenológico dirige-se, tal qual propõe Dartigues (1992, p.79), ao “mundo cotidiano em que vivemos, agimos e fazemos projetos, entre outros, o da ciência, em que somos felizes ou infelizes”.
Segundo Mansini (1989) não existe o método ou um método fenomenológico, porém existe uma postura fenomenológica, que parte de uma atitude aberta requerendo, para tanto, uma tentativa da suspensão de pressupostos ou conceitos predeterminados a respeito do que se pretende investigar.
A pesquisa fenomenológica objetiva dar conta do que acontece pelo clareamento do fenômeno, buscando, efetivamente, construir uma compreensão dos fatos.
Sendo a fenomenologia um modo de acesso à realidade concreta, visa à compreensão de experiências, buscando alcançar o sentido do mundo para aquele que é sujeito do mundo, ator e protagonista de sua própria vivência. Seus pressupostos teóricos e metodológicos são importantes recursos para se pensar como as pessoas estão, num dado momento, procurando buscar, no próprio fenômeno, seu desvelamento. A adoção de uma postura desta natureza requer, por sua vez, o esforço de dirigir-se ao fenômeno sobre o qual se interroga sem juízos ou conceitos previamente elaborados, de modo a possibilitar o pesquisar no sentido da descoberta.
Este é um dos grandes problemas que temos no mundo da investigação aeronáutica. Escuta-se ainda com muita freqüência “Foi erro ou falha do piloto”, todas as vezes que um acidente aeronáutico acontece. Ou, mesmo, “Foi erro do operador ativo”, não importa em que instância de atividade do vôo ele se faça presente.
Houve avanços nos conceitos de erro humano, partindo dos pressupostos de James Reason (1990) e Sidney Decker (2005). Hoje entendemos errar como sintoma de problemas interiores no sistema, tanto no humano individual (o operador, o gerente) como no humano coletivo (a organização). A partir desse conceito se faz necessário buscar, não somente a explicação das falhas ativas humanas, mas também a compreensão de como se expressam e onde aparecem. Especialmente, deveríamos buscar o entendimento de que as decisões humanas, na configuração de suas falhas ativas, mesmo aquelas consideradas “absurdas”[2], no instante em que foram executadas e em sua condição de atividade de ação expressa, foram pensadas como corretas, por aqueles que as assumiram naquela situação.
Nos processos investigativos de acidentes, a sensação que se tem é de que estamos analisando fatos e de que não contemplamos as condições de interação de todos os aspectos pertinentes a um processo que revela uma atuação humana. Nesses aspectos, vislumbram-se fatores humanos, interfaces que passam por dimensões da forma como o homem usa suas habilidades, as quais estão sujeitas ao seu contexto histórico, social, profissional e cultural.
Com idéias pré-concebidas deixamos de analisar uma perspectiva do todo e nos voltamos essencialmente, cada investigador, para o âmbito apenas do seu saber, sua verdade dentro de suas partes.
É assim que perguntamos: trazendo nossa proposição de pensamento nas investigações que participamos:
Qual é o papel do investigador? Como se dá sua condição na pesquisa? Podemos afirmar que a pesquisa fenomenológica se diferencia dos demais modelos na correlação que estabelece entre os participantes da pesquisa. Pensar no investigador é pensar também que se trata de um sujeito frente a um objeto ou a vários objetos (avião, mecânica, pilotos, controladores, organização...), numa relação que se estabelece com um determinado fenômeno. O pesquisador encontra-se implicado naquilo que pesquisa, sendo o seu olhar, as ferramentas e os instrumentos que utiliza integrados a sua postura, de fundamental importância.
De acordo com Boss (1977, p.7-8), “um método pode ser chamado de fenomenológico quando em seu enfoque ele se detém, exclusivamente, nos fenômenos a estudar. Assim, tal método visa somente trazer à luz, de modo cada vez mais diferenciado, o que se mostra dos próprios observados, o que se apresenta por si mesmo ao observador e ao ouvinte”.
Procurando fazer uma aproximação do método fenomenológico com o fenômeno sobre o qual interrogamos, compreender um acidente lembraria o instrumento da carta de navegação, ou mesmo os instrumentos mais sofisticados que permitem navegar em padrões mais automatizados onde são inseridas informações. Existem pontos de base para a compreensão da rota, mas, sem deixar de pensar que o prumo e o rumo podem ser muitos, o destino se faz ao se caminhar.
É Possível Fazer Diferente?
Acreditamos que sim!
Apresentamos aqui duas experiências desenvolvidas no Nordeste do Brasil.
Seguindo um pensar mais grupal que individual, as entrevistas dos investigadores passam a se dar com a coletividade da comunidade aeronáutica onde ocorreu o acidente. O contato com a comunidade aeronáutica da região é feito de forma a trabalhar a investigação como um processo interventivo. Na medida que se colhe informações e elucida-se fatos, traça-se propostas de ação na prevenção. Neste processo, os investigadores trabalham sempre juntos diante das entrevistas e dos demais métodos de colher informações e fatos. A troca de informação entre eles, os investigadores, é constante e sistemática.
Exemplo 1: O estado do Piauí apresentou um número significativo de acidentes entre 2004 e 2005, o que gerou uma proposta no antigo SERAC2 (DAC) durante a investigação de um dos acidentes acontecidos: os Fóruns Interventivos de Investigação.
Estes fóruns aconteciam na medida em que o processo de investigação transcorria. Foram realizadas ações de participação e responsabilidade comunitária, para tornar possível a mudança no sistema aeronáutico vigente no Piauí. Nos fóruns, toda a comunidade é convidada, e nas discussões implementadas cada resultado até então colhido é repassado à comunidade, e todos passam a assumir as possibilidades de resolução dos problemas identificados diante das ocorrências. Ações estas que são agendadas, com prazos a serem cumpridos e com a perspectiva de manutenção da integração entre os organismos responsáveis, tais como INFRAERO, DECEA, AEROCLUBES, EMPRESAS AÈREAS, PODER PÙBLICO, entre outros.
Percebe-se claramente, nos últimos três anos, que as ocorrências passaram a se apresentar em outras circunstâncias. Que não estão se configurando tendências reincidentes para casos, por exemplo, de descaso em procedimentos operacionais preestabelecidos entre os organismos gerenciadores do sistema. E que fomentou-se uma maior integração entre os órgãos públicos de responsabilidades na aviação local, gerando a melhoria da formação dos trabalhadores da aviação na região da cidade de Terezina onde duas empresas juntaram-se para a realização de um curso Company Resource Management (CRM).
A cada investigação realizada na região, novas reuniões tem acontecido. Não mais como os fóruns, porém, busca-se manter o diálogo com a comunidade. Aborda–se as ocorrências e os processos em que se configuraram, e são analisadas com toda a comunidade.
Os investigadores trabalharam conjuntamente nestes fóruns, todos ao mesmo tempo. As questões que necessitaram ser analisadas na ordem individual ou fora do contexto coletivo, seguem os parâmetros já existentes. Cada investigador participa ativamente dos fóruns, e desta forma consegue-se colher informações e, simultâneamente, já trabalhar recomendações de segurança, que chegam a comunidade e ao mesmo tempo são pensadas junto com ela, antes de termos o que chamamos de relatório final.
O contato com os fatos/fenômenos que levaram ao acidente ou incidentes acontecidos já estará dimensionado dentro da comunidade aeronáutica, que, acreditamos, busca melhor compreensão de suas ocorrências na aviação local. Após o relatório final, novo contato com a comunidade aeronáutica é agendado, a partir de vistorias e de participação nos eventos locais.
Exemplo 2: Uma empresa de Taxi Aéreo em Salvador, em 2007, apresentou incidente e acidentes com componentes repetitivos no contexto da relação comandante versus co-pilotos: um incidente grave e dois acidentes com morte de dois pilotos.
Cada acidente vivido pela empresa foi analisado com toda a empresa, e o último acidente foi investigado a partir de ações coletivas, não só com os pilotos, mecânicos e gerentes. Criou-se uma sistemática de analise dos problemas psicossociais vivenciados dentro da empresa, e utilizou-se instrumentos de avaliação sobre assertividade e condução da supervisão operacional, na medida em que o acidente foi investigado.
Estas propostas de ação foram dimensionadas num trabalho conjunto, da empresa aérea e o Segundo Serviço Regional de Investigação e Prevenção (SERIPA 2), com técnicos das duas organizações presentes e ativos no processo.
A investigação dos acidentes configurou a necessidade de algumas recomendações na ordem imediata de um curso de Company Resource Management (CRM), e a empresa programou, sob acompanhamento do Órgão investigador (SERIPA2), a reciclagem especifica do CRM na empresa, com base nas análises dos acidentes investigados. Até o momento, a empresa em questão não vivenciou eventos ou ocorrências em condições semelhantes.
Considerações finais
Estes dois exemplos, entre outros já vivenciados, podem parecer incipientes como resultados efetivos dessa proposta de investigação, porém demonstram que investigar um acidente é mais que simplesmente fazer um relatório em que se somam as partes operacional, material, psicológica e médica. Investigar é intervir, de forma a fazer o Sistema caminhar em rumos diferentes e mais conscientes de suas dificuldades e problemáticas.
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Artigo baseado na Dissertação de Mestrado de Vitor Cardoso, orientada por Henrique Cukierman, intitulada: Os estudos sociotécnico da interface “ser humano-máquina” envolvendo computadores: o caso de um acidente aéreo, apresentada à Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2004.


[1]Aluna especial do doutorado de Neuropsquiatria da UFPE, Mestre em Psicologia Clinica pela UNICAP ,Psicóloga do Segundo Serviço Regional de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos - SERIPA 2 -/CENIPA -BRASIL
[2] “O inconsciente existe também naqueles não doentes, mas nesses casos ele é muito menos visível e muito menos evidente. Em nossa opinião, a decisão absurda é o equivalente a um eclipse do sol. A situação excepcional do sol é uma oportunidade para observamos sua coroa, impossível de ser vista de qualquer outra forma.” (MOREL, 2003)

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