Maria
da Conceição C. Pereira
Doutora
em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento na UFPE, Mestre em Psicologia
Clinica Institucional, Psicóloga do Segundo Serviço Regional de Investigação e
Prevenção de Acidentes Aeronáuticos-SERIPA/CENIPA, docente em Curso de Ciências
Aeronáuticas, Instrutora em Segurança de voo, facilitadora de CRM e consultora
em Fatores Humanos e Gerenciamento de Crises.
1-
INTRODUÇÃO
Um acidente
aeronáutico instala uma crise, e, na instauração de uma crise, há sempre
situações novas e desconcertantes que podem dar lugar a uma inoperância ou
desativação dos habituais mecanismos adaptativos psicológicos.
Segundo, Colino (2007), esses eventos
traumáticos esfacelam a sensação de segurança, de controle e de confiança.
Surgem vulnerabilidades e necessidades de explicações, na tentativa de buscar
compreensão do que ocorreu. Nesse ponto, na dimensão das vivências de situações
traumáticas, faz-se premente a perspectiva de atenção às vítimas, além do
estabelecimento de elementos de controle e segurança, a fim de dominar o
caótico e dissipar a confusão derivada do acidente. O atendimento psicológico
nas situações de emergências e desastres são de fundamental importância na
medida que se realiza um trabalho voltado de forma especial a mitigação e
prevenção em relação a saúde mental das pessoas que direta ou indiretamente
foram afetadas .
2 - CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
Um conceito que deve
ser entendido, para melhor compreensão desse tipo de atendimento, é o de crise, que será definido aqui:
Experiência limite, não por ser uma experiência que desafia o limite,
mas por extravasar o delimitado. É uma experiência que traz um excesso, excesso
do que é insuportável e intolerável... Ruptura em que se redistribuem, de
maneira brutal, as condições da realidade, instalando um estado inédito. (KNOBLOCH 1998, p.
133)
Estudos apontam que
75% das pessoas expostas a uma situação traumática necessitam de avaliação
quanto à possibilidade de apresentação de futuros distúrbios psíquicos, que
poderão se associar a fobias, depressão, ansiedade e excessos no consumo de
álcool e entorpecentes (FREEDY et
al., 1994).
Berceli (2009) diz
que o transtorno de estresse pós-traumático é qualquer desordem de ansiedade
física, psicológica ou emocional após um evento estressante ou que
sobrecarregue o organismo. Essa ansiedade pode se manifestar de várias formas.
Os indivíduos podem sofrer flashbacks (reviver o evento), perturbação do
sono, perda de memória, falta de concentração e pesadelos, bem como evitar,
simbolicamente, pessoas, coisas ou eventos. Já que essas experiências nem
sempre são óbvias, muitas pessoas sofrem sintomas de Desordem de Tensão
Pós-Traumática (PTSD) em isolamento e silêncio.
Igualmente, busca-se questionar, neste texto,
a gravidade dos problemas trazidos pela vivência traumática. Acontecimentos
comuns podem produzir efeitos traumáticos que são tão debilitantes quanto
àquelas experiências dos veteranos de combate ou por sobreviventes de abuso na
infância. Os efeitos traumáticos nem sempre aparecem imediatamente após os
incidentes que os causaram. Os sintomas podem permanecer latentes,
acumulando-se por anos ou décadas. Então, durante um período estressante, ou
como resultado de outro incidente crítico, podem aparecer sem nenhum aviso
(LEVINE; FREDERICK, 1999).
Em se
tratando da vivência da perda e do trauma provocado diante de um desastre, as
reações são muito variáveis. Não é possível fazer previsões sobre o tempo que
as pessoas traumatizadas irão levar para se recuperarem ou até mesmo para
apresentarem sintomas ou transtornos mentais decorrentes dessas vivências. Há
fatores específicos, em cada indivíduo, que podem contribuir para a recuperação
ou impedi-la, e a existência de sistemas de apoio, dentro e fora da comunidade
envolvida em um acidente, torna possível um trabalho de prevenção de
adoecimentos futuros.
A literatura acadêmica, majoritariamente,
preconiza que os sintomas pós-trauma são transitórios e que, após algumas
semanas, o equilíbrio é restabelecido. Mas é preciso considerar que, para
algumas pessoas, isso funcionará; para outras, não. E os efeitos do trauma
poderão acompanhar a pessoa durante muito tempo após a ocorrência, o que poderá
afetar a sua vida pessoal e profissional.
Benyakar (2003), sustenta a ideia de que o caráter traumático
de um acontecimento depende da relação entre três conceitos: evento factual, vivência e experiência. O
evento factual surge da realidade ou mundo externo e independe do
pensamento ou desejo do indivíduo. O conceito de vivência remete,
exclusivamente, ao que é conhecido como mundo interno. Por fim, a experiência
seria o resultado da articulação dos dois conceitos anteriores.
Assim sendo, uma
experiência traumática ocorreria quando um evento factual específico se
apresenta com intensidade capaz de romper a articulação entre um afeto (mundo
interno) e sua representação (vinda de percepções do mundo externo, da
realidade), conservando-se no psiquismo como um fato não elaborado ou
elaborável (BENYAKAR, 2003 apud VIERA NETO, 2005).
Outro conceito que necessita de compreensão
sobre o envolvimento de uma pessoa em um desastre é a condição do luto,
entendido como uma reação normal e esperada para o rompimento do vínculo (Parkes,1998).Tem como função
proporcionar a reconstrução de recursos e viabilizar um processo de adaptação
às mudanças ocorridas em consequências das perdas (Bromberg 1995; Franco 2005; Parkes, 1998).
Franco
(2005) afirma que há fatores de risco para a instalação de um luto
complicado, entre os quais se encontram os que estão relacionados às
circunstâncias da perda: mortes repentinas, violentas, consideradas prematuras
pelo enlutado; a causa da morte e o seu significado; o tipo da morte,
destacando-se exposição à mídia, mortes estigmatizadas ou causadoras de
vergonha diante do ambiente social; existência de segredos relativos à morte e
à sua causa; falta de rituais; falta de suporte; outras perdas concomitantes à
morte.
Há também, na possibilidade de vivência do
luto, a condição do luto complicado, e este é considerado o luto que
dimensiona um luto traumático, e, como o conceito de luto traumático
ainda é pouco claro. Faz-se necessário observar que ele pode ser entendido como
um conjunto de sintomas resultante de trauma e angústia de separação secundária
à perda de um ente querido. A separação é traumática e, não, as suas
circunstâncias.
O luto traumático é
uma complicação que pode ocorrer independente das circunstâncias da morte do
falecido e que está essencialmente relacionada à presença de certos traços de
personalidade entre os enlutados. Para os enlutados com vulnerabilidades, a
ruptura poderá gerar uma condição cuja relação poderá encontrar espaço para o
desenvolvimento do estresse pós-traumático, e há um risco de envolver
transições para condições de depressão, com risco de suicídio, ampliando as
dificuldades na reabilitação. (Baubet; Rouchon; Reyre et al.,
2010).
Na situação do acidente aéreo, vários fatores
se juntam e se combinam para fazer gerar um luto complicado, com consequências
de um luto traumático. Primeiro, a perda que parece brutal e que pode envolver
várias pessoas da mesma família. O acidente aéreo em si não permite que suas
circunstâncias ofereçam explicações racionais, pois muitas vezes nem sequer o
corpo é resgatado para que o familiar possa realizar seus ritos, e a ausência
do corpo morto pode levar a uma vivência de negação da morte para aquele que
perdeu seu ente querido.
Segundo Baubet,
Rouchon, Reyreet al. (2010), a função de quem vai atender diante de tal
situação é a de permitir um processo de “desintoxicação psíquica”, diante do
fato traumático, que permita a permanência da vontade de viver “apesar de”.
Entende-se aqui que gerar movimentos para a
vida, sem quebrar o sistema de defesa psicológica das pessoas envolvidas no
acidente, seria o processo psicológico que um profissional de saúde deveria
implementar diante de atendimentos em eventos traumáticos.
Desastres aéreos não acontecem frequentemente;
porém, quando acontecem, afetam emocionalmente um número de pessoas muito maior
do que o dos que estão envolvidos diretamente com a tragédia.
2- Considerações técnicas sobre o atendimento
psicológico em situações de desastres e emergências
Colino (2007) considera que é de suma importância
que os profissionais que atendem em situações de trauma cuidem do nível de
comunicação expresso, escutando para que o afetado/vítimas se escute, ajudando a definir o indefinido,
trabalhando com informações que compensem o que não está claro, tentando
eliminar lacunas, devolvendo o respeito e desenvolvendo expectativas de
futuro. Essa condição deve ser compreendida
como o próprio processo de integração da experiência traumática.
Tendo como base a observação como instrumento de
ação no atendimento é possível identificar, e é
necessário estar atento a algumas
das fases propostas por Horowitz; Wilner e Alvarez (1979) em seus estudos, como
respostas específicas de uma situação de trauma: o choque, a negação e a aceitação. O choque é a perplexidade
como resposta imediata a um evento traumático, o surgimento de fortes emoções. A negação ocorre antes de apresentarem respostas emocionais.
O profissional ou o
voluntário em seu trabalho precisa estar atento a esses comportamentos e saber
posicionar-se diante deles.
Existe a necessidade
de ajudar as pessoas a alcançarem a fase da aceitação, para que não ocorram desequilíbrios psíquicos a
ponto de serem geradas condições de instalação de sintomas e de adoecimento
posteriores ao evento traumático.
Provavelmente, o
mais difícil é a nossa própria compreensão, enquanto profissional ou
voluntário, do escopo do nosso papel a ser vivido diante daquela situação. É
preciso ter clareza e reconhecer que fortalecer os assistidos é diferente de
fazer as coisas por eles, não cedendo ao impulso, às vezes irresistível, de
ajudar de toda forma possível.
Quando os
assistidos tentam resolver seus próprios problemas, sentem-se mais capazes e
mais competentes e com coragem para enfrentar o próximo desafio diante do
evento vivido, e esse é o papel fundamental
nesse tipo de assistência. O vitimado/afetado terá que seguir seu
caminho, e os profissionais ou voluntários , ou quaisquer outros profissionais
em atendimento, não podem representar uma “terceira perna”, porque só se anda
com duas, e o movimento para a vida precisa seguir.
O atendimento
psicológico deve prever posterior monitoramento e acompanhamento dessas
famílias na tentativa de identificar aquelas pessoas mais vulneráveis e que
poderão apresentar dificuldades específicas para seguir sua vida. A empresa
aérea envolvida no acidente deve ter o
compromisso de apoiá-los, não só garantindo pagamentos de seguros, mas também
buscando oferecer outros recursos a preservação da
saúde e da qualidade de vida dessas famílias. Como por exemplo, a condição da assistência psicológica e médica não
por um tempo determinado por lei, mas pelo adoecimento, o sofrimento humano é
subjetivo e único a cada um.
3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Treinar é preciso,
capacitar pessoas no atendimento em situações de emergência e desastres é fundamental e que, mesmo assim, haverá
situações singulares e complexas no atendimento.
É importante ter a
percepção e a sensibilidade de que atendimentos desse tipo deve ser congregador. Deve congregar as vitimas, os familiares e amigos
das vítimas e os profissionais de atendimento, principalmente os profissionais de saúde em especial os
psicólogos e os voluntários treinados.
O movimento
psicológico nessa experiência torna-se extremamente
desgastante e doloroso para as pessoas envolvidas. Uma das perspectivas do
atendimento é trabalhar a instalação do luto dentro da situação de emergência,
e trabalhar o luto não é abafar a dor. É principalmente deixá-la emergir para
poder sair dela inteiro. Freud já dizia: “A dor que não é compreendida
inevitavelmente reaparece, como um espírito andante que não pode descansar até
que o mistério seja esclarecido e o encanto quebrado” (FREUD, 2006).
Outros pontos
relevantes dizem respeito a compreender
que não só os parentes, mas também os profissionais de companhias aéreas,
grupos de salvamento, profissionais de saúde, funcionários das instituições
envolvidas, os controladores de tráfego aéreo, os pilotos que estiveram
envolvidos diretamente no acidente, jornalistas, entre outros, também precisam
de cuidados.
A equipe de
atendimento deve estar sempre se trabalhando, buscando apoiar um ao outro e se
permitindo sair, por alguns momentos, do local onde o grupo de vitimas, familiares, funcionários e outros são
atendidos, para oxigenar sua condição psicológica. Em seguida, é possível
retomar os atendimentos de modo mais produtivo e oferecer cuidados com
significativa função de apoio naquele momento de enfrentamento.
Faz-se necessário um trabalho interdisciplinar
coeso, em que principalmente os profissionais de saúde fiquem mais juntos e
atuando no mesmo espaço. As experiências dolorosas também oferecem a
oportunidade, no que diz respeito a confirmar alguns conhecimentos já
adquiridos, e reconhecer que saberes prévios podem ser revistos, pois sempre há
muito a se aprender diante de um desastre ou de uma situação de emergência Em se tratando do atendimento em crise, em
situação do atendimento em desastres e emergência e em instalação do luto, há sempre possibilidades de novas compreensões diante do
sofrimento humano que permite ao
profissional ou voluntário atuante rever
seus conceitos e suas práticas .
“Mesmo quando tudo pede um
pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para.Mesmo quando a alma peça calma...a vida é rara...a vida não pára.”
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para.Mesmo quando a alma peça calma...a vida é rara...a vida não pára.”
(LENINE, 1999)
5 - REFERÊNCIAS
Baubet,Thierry; Rouchon,Jeanne-Flore; Reyre, Aymeric. La prise en charge des familles de
victimes d’une catastrophe aérienne. Soins
Psychatrie, Paris –França, p. 28-32,
2010.
Benyakar,M. Disruptivo: amennazas individuales e colectivas - El psiquismo
ente guerras, teroristas, e catátrofes sociales. Buenos Aires: Biblos, 2003.
BERCELI,
David. Exercícios para libertação do
trauma: um revolucionário novo método para recuperação do estresse e
trauma. Tradução Amadise “Tai” Silveira. Recife: Libertas, 2009.
Bromberg,
M. H. A psicoterapia em situação de
perda e luto. Campinas: UNICAMP, 1995.
COLINO, F. D. Superando el trauma - la vida trás el 11-M.Barcelona – Espanha:
Editora La liebre, 2007.
FRANCO,
M. H.P. Atendimento psicológico
para emergências em aviação: a teoria revista na prática. Estudos de Psicologia, Natal, RN: Universidade Federal do R.G. do
Norte, a. 10, v. 10, n. 2, p. 177-180, 2005.
FREEDY, J. R. et al. Understanding acute psychological distress
following natural disaster. Journal of Traumatic Stress, v. 7, p. 257-274, 1994.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud: volume 2: estudos sobre a histeria (1893-
JAMES, R. K.; GILLILAND, B. E. Crisis intervention strategies.
Londres: Brookes Cole, 2001.
KNOBLOCH, Felícia. O tempo do traumático. São Paulo: Educ, 1998.
LENINE. Paciência. Álbum: na pressão, 1999. 1 CD.
LEVINE, Peter A; FREDERICK, Ann. O
despertar do tigre: curando
o trauma. São Paulo: Summus, 1999. (Novas buscas em psicoterapia; v.57).
PARKES,
C. M. Luto: estudos sobre a perda na
vida adulta. São Paulo: Summus, 1998.
VIERA NETO, Othon.
Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT); Etiologia, Conceito, Prevalência.
In: ______. VIEIRA, Claudia Maria Sodré. Transtorno
de estresse pós-traumático: uma neurose de guerra em tempos de paz. São
Paulo: Vetor, 2005. p. 29-76.
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